O Rio Grande do Sul tem atualmente 90% dos seus municípios impactados pela enchente (não digo o número exato porque é uma cifra que muda toda hora e já pode ter sido alterada quando este texto for publicado). Porto Alegre está com o nível de água do Guaíba ainda a cinco metros de altura (não vou pôr o número exato porque isso muda de hora em hora e enquanto escrevo esta coluna a previsão é de que comece a chover de novo). O Rio Grande do Sul é um estado arrasado, com a Capital com seu aeroporto e sua rodoviária fechados, com atividades econômicas suspensas em quase todo seu território, pontes vitais para o acesso às cidades destruídas e lavouras arrasadas. Vai demorar meio que uma década pro Estado se recuperar desse golpe em termos de infraestrutura, de prejuízos, de economia. Além de milhares de desabrigados, há perdas mais sutis, em termos de toda uma economia que simplesmente colapsou: autônomos que não estão fazendo a renda mínima da semana, desabastecimento, comércios impossibilitados de reabrir seja porque a água impede o acesso seja pelas imensas perdas financeiras.
O Caramelo
E com tudo isso, houve um momento na semana passada em que uns 90% dos perfis nos quais eu navegava quando havia luz, internet ou ambos, parecia preocupada com um único tema no meio da enchente: se um cavalo que havia ido parar sabe-se como no telhado de uma casa em Canoas, ilhado pelas águas, e que se tornou um símbolo bem particular de resiliência do Estado todo, visto por milhões de olhos, seria salvo.
Eu entendo a dimensão simbólica de termos um resgate tão celebrado de um animal que é tão importante para a identidade histórica e cultural mesma de uma parte do Estado (sim, uma parte: o próprio fundador do tradicionalismo Paixão Côrtes publicou vários estudos sobre as especificidades das tradições de diferentes regiões do Estado, mas o CTGismo tacanho tenta impor suas bombachas cintilantes como monocultura folclórica a todo o RS). E, como qualquer outra pessoa, também fiquei feliz por terem conseguido salvar o cavalo depois de ele ter aguentado firme contra todas as expectativas por quatro dias, em pé, em um espaço minúsculo no telhado.
A história do cavalo comoveu muita gente, os textos sobre ele se disseminaram nas redes, alguns muito bonitos, de fato, e ele ganhou popularidade Brasil afora com um nome que comprova o quanto a repercussão da tragédia é um fenômeno global vinculado ao algoritmo de redes: o cavalo foi “batizado” pela internet que acompanhava seu resgate com a atenção de um capítulo de novela (ou série de streaming, pra não parecer que sou muito velho) de Caramelo. Isso, Caramelo, um apelido que a geração TikTok criou para memes e vídeos engraçados de cachorro tomou à frente para denominar um cavalo que, ao menos nas imagens que eu vi, todas com baixa resolução, então posso estar errado, parecia mais um “gateado”, no linguajar tropeiro de quem realmente lida com essas coisas. No embate entre o TikTok e a tradição, por ora perdemos.
Mas ok, Caramelo é um nome bem simpático, e a história específica desse cavalo teve final feliz (assim como a da égua encontrada em um terceiro andar num prédio em São Leopoldo, e ao contrário de outros momentos em que cavalos foram filmados arrastados pela enchente). Fico contente. Eu teria, talvez, um certo desespero de jornalista em apontar que esse tipo de cobertura de tragédia que se tornou a hegemônica nos veículos não é muito útil porque apela para o sensacionalismo do episódico criando uma noção perpétua de “presente” em que os fatos parecem surgir do nada e se resolver sozinhos, sem contexto, como simples eventos não conectados. Tanto que agora que resgataram o Caramelo, não ouvi mais falar dele, já passamos para a égua de São Leopoldo e provavelmente amanhã estaremos lidando com a mula do Guaíba. Ah, e já que falamos em Mula do Guaíba, me dei conta de que outra coisa me incomodou um pouco na onipresença do assunto sobre o Caramelo na cobertura dos veículos. Passamos dias falando do Caramelo. E até o momento, têm-se falado muito pouco na imprensa cada vez mais “oficial” sobre o Cara Melo.
O Cara Melo
Sebastião Melo é o prefeito de Porto Alegre, mas eu não consigo não chama-lo de “cara”, porque é isso o que ele vem se provando ser. Um cara ali, que venceu a prefeitura numa eleição em que sua campanha, alinhada à do então presidente que eu pretendo nunca mais dizer o nome, pagou carro de som para espalhar mentiras sobre a outra candidata do segundo turno. Ok, ele ganhou, então é o prefeito. Mas também é só um cara.
Melo já foi o vice-prefeito, na gestão Fortunati (aquela que, em nome da “modernização da Orla” que a RBS gostava de rotular quem era contra de caranguejo derrubou árvore pra caramba na Orla, inclusive Pau-Brasil, o que é proibido, mas misteriosamente não deu nada). Eu queria poder formular a próxima frase de maneira gentil, mas o máximo que consigo é dizer que Sebastião Melo também vem se mostrando completamente despreparado para a função que está desempenhando pelas circunstâncias históricas de ser o prefeito da Capital no momento da maior enchente já registrada no Estado. Porque existem duas discussões em curso e as duas estão se confundindo. No interior, muitas cidades foram atingidas por uma inundação que transbordou rios a uma altura inimaginável. Já Porto Alegre, foi alagada pela incompetência da administração municipal – a mesma que, segundo andei lendo por aí, tem planos já de anunciar candidatura à reeleição no meio da enchente. E isso, que deveria estar sendo cobrado todos os dias do Cara Melo, tem sido escamoteado pela imprensa simpática a ele (eu poderia dizer que veículos de comunicação serem parte de uma companhia cujos donos também têm participação em empreendimentos como uma construtora pode ter a ver com essa predileção por um prefeito tão amigo das empreiteiras, mas seria leviano)
Viver em Porto Alegre nestes dias têm sido uma experiência alucinatória em vários sentidos. O trauma, a tensão dos dias, os relatos de amigos em situações piores, as cenas de pessoas desesperadas em busca de notícias de parentes, as cenas surreais da cidade debaixo d’água dão um tom de irrealidade. Algo entre o onírico quando se vai a um abrigo deixar doações e se vê o tamanho da corrente solidária e os dias de pesadelo em que cai a ficha do que de fato aconteceu aqui.
E uma das coisas que para mim aumenta cada vez mais o grau de irrealidade é uma certa blindagem inequívoca da grande imprensa do Estado à atuação desastrosa do atual prefeito.
A essa altura, vocês viram o vídeo, é uma imagem de câmera de segurança que está circulando nas redes e pelos zaps da vida. O muro da Mauá segurou o Guaíba, mas o centro alagou a partir de dentro, com água vertendo dos bueiros. Isso porque uma das bombas de drenagem falhou – já havia falhado antes em novembro, quando a tragédia de agora se anunciou mas não se concretizou. O DMAE tem sido um case de sucesso nas redes sociais porque seus abnegados funcionários estão desde o início da enchente tentando fazer as bombas funcionarem na base do cuspe e remendo, e têm conseguido. Então por que a administração municipal, tendo entre novembro e agora para se planejar, não fez esses reparos quando deveria? Com exceção de veículos independentes como o Sul21 e o Matinal, a imprensa demorou o bastante para fazer essa pergunta, demorou tanto que quando fez já havia uma corrente oposta de desinformação circulando.
Menino Deus
Cidade Baixa e Menino Deus, dois bairros tradicionais e centrais da cidade, também ficaram debaixo d’água porque as bombas de drenagem foram desligadas. O prefeito tinha a informação desde o meio da manhã, mas achou tempo de se deslocar de carro até o local para gravar um vídeo avisando que os moradores desses dois bairros deveriam vazar porque em umas duas horas as ruas estariam inundadas.
Essa é a parte que para mim parece a lembrança de um sonho ruim. O prefeito de uma cidade anuncia que foram desligadas bombas de drenagem e que a população de dois bairros em que vivem 50 mil pessoas deve sair correndo o mais rápido possível porque vai alagar. E não há repercussão. O colunismo amigo sabujo partiu para o abafa já no mesmo dia, abraçando o desligamento como “necessário”. Mas necessário por quê? As explicações tinham a ver com eletricidade, mas ninguém parece muito disposto a ir atrás disso. Faz falta jornalismo na capital dos gaúchos…
E depois tivemos ainda a cereja desse bolo de matéria pouco recomendável no quesito sanitário. O prefeito deu uma entrevista ao apresentador do Jornal Nacional, falando para o Brasil inteiro. Questionado sobre o óbvio (aparentemente, o caráter de matriz da Globo autoriza perguntas que sua filial não anda fazendo), sobre que tipo de política ambiental deveria ser adotada dali para frente, Melo desconversou dizendo que política “já tinha muita”, o que não havia era “dinheiro”. E que as pessoas mais afetadas “não deveriam estar morando ali onde estavam”.
Sobre faltar dinheiro: Melo é um prefeito privatista, como têm sido todas as gestões de Porto Alegre nos últimos 16 anos. Já pediu um estudo ao BNDES sobre a concessão do departamento à iniciativa privada. A consulta era viciada na origem: a prefeitura pediu um estudo da viabilidade da privatização, mas não da viabilidade do DMAE público. Melo reforçou o pedido em setembro do ano passado, quando já havia ocorrido uma das enchentes que quase fez o nível do Guaíba transbordar. Pois bem, Melo quer privatizar o DMAE com caixa cheio. Reportagem da Folha de S. Paulo apontou que o departamento tem R$ 428,9 milhões de “ativo circulante” e resultado patrimonial com superávit de R$ R$ 31,1 milhões, quando não foi investido um único centavo em prevenção ou manutenção do sistema de prevenção a enchentes de Porto Alegre que poderia ter evitado a cheia da Capital. Dizer que “há legislação, não tem é dinheiro” é cinismo.
Não duvido que Melo tente de novo passar o DMAE nos cobres depois que a eleição passar, se tivermos o azar de ele ser reeleito – isso porque, numa ironia que eu vou achar muito cínica mas que provavelmente vai acontecer, os esforços demonstrados pelos funcionários sobrecarregados de um DMAE sucateado e que ainda assim estão trabalhando dia e noite para restabelecer bombas de drenagem e estações de tratamento serão usados na campanha eleitoral por um Melo candidato. Quando virem isso no próximo horário eleitoral, não esqueçam deste texto.
E quanto a “afetados em zonas atingidas que não deveriam ser habitadas”, Melo deveria perguntar o que acham disso os donos da Livraria Taverna, em plena Casa de Cultura. Ou a L&PM, que provavelmente perdeu meio século de história com um depósito inundado no bairro Farrapos, outra localidade histórica de Porto Alegre e que foi inundada não por causa direta da enchente, mas por falha no sistema de proteção.
Um parêntese: eu sou da área da Cultura, literatura mais especificamente. Há, de acordo com a Câmara Rio-Grandense do Livro, em entrevista ao portal Coletiva, 24 empresas do setor livreiro atingidas pela enchente. A CRL lançou uma campanha para arrecadação de recursos para auxiliar essas empresas. Há outras iniciativas voltadas para artistas da área do audiovisual, da música etc. Procurem. É normalmente a classe que só consegue voltar aos eixos depois de todo mundo. Foi assim na pandemia, será assim na inevitável recessão de agora. Fim do parêntese
Como eu dizia, eu não sei direito em que realidade ando vivendo quando, com essa lista singela e não exaustiva de incompetências, Melo não só segue prefeito como parece não enfrentar um escrutínio tão firme. E já anunciou seus planos de reeleição. Que Melo não seja o centro de vários escândalos públicos parece um delírio para mim. E isso que não falei dos laços perigosos que seu vice mantém com uma plataforma dedicada ao revisionismo histórico, à negação da mudança climática e à criação metafórica de um Brasil paralelo.
Assim, eu penso que devemos ficar atentos nesse mar de distrações midiáticas que conseguira nos desviar do foco mesmo se não houvesse a campanha ativa da extrema direita nacional pela desinformação (e há, mas gente demais já falou disso, aqui mesmo na Sler tem textos melhores do que os meus sobre isso). Agora que todo mundo já acompanhou e ficou feliz com a salvação do Caramelo, é hora de tratarmos de salvar a nós mesmos, à nossa ideia de cidade, ao potencial de Porto Alegre, das mãos do Cara Melo.
Foto da Capa: reprodução das redes sociais
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