Carga Pesada foi uma série da TV Globo de 1979 e 1980, com direito a revival de 2003 a 2007, em que Stênio Garcia e Antônio Fagundes faziam os papéis de dois caminhoneiros: Pedro e Bino, que rodavam o Brasil vivendo histórias que tratavam de temas como a reforma agrária, prostituição, miséria, poluição, má conservação das estradas, violência contra mulher, trabalho escravo no Brasil e muitos outros.
Todo mundo lá em casa, assim como a maioria dos brasileiros, adorava os programas. Pudera, além de ótimos atores, a série apresentava uma realidade: poucos conhecem o Brasil como os caminhoneiros. Eles já fazem parte do nosso folclore. Seja os caminhoneiros do Sul levando o churrasco e a cultura gaúcha para todo o país, sejam os destemidos que transportam a produção de soja e outros grãos por estradas quase intransitáveis do Brasil profundo, ou mesmo o caminhão mais leve que transporta a mercadoria que você comprou na internet até sua casa.
Caminhões fazem parte do cenário em todo o mundo. Nos Estados Unidos, são mais de 30 milhões. Sem eles não existiria o Walmart ou a Best Buy. Mesmo na Europa, onde há mais transporte ferroviário, você os vê por toda parte. E na Índia, quem não viu aqueles vídeos impressionantes de caminhões se pendurando nas encostas dos Himalaias?
E não são só os caminhões. Milhões de produtos e mercadorias, do petróleo, aos carros e bugigangas chinesas, são transportados todos os dias pelo mar e pelo ar por uma imensa frota de navios e aviões. Praticamente todos movidos a combustíveis fósseis.
E agora a má notícia: se eletrificar a frota de veículos leves já era complicado por conta de seu imenso número, deixar de utilizar combustíveis fósseis para mover os veículos pesados é, no momento, quase impossível.
Comecemos pelos caminhões. Eletrificar veículos urbanos como ônibus e caminhões de lixo, por exemplo, é mais fácil. Além de um peso de baterias suportável, esses veículos tendem a ficar parados à noite, quando podem ser recarregados. Mas lembrando, como eu mencionei na coluna anterior, a densidade energética das baterias é 35 vezes menor que a da gasolina (e do diesel). Se quisermos que um caminhão mais pesado faça pelo menos mil quilômetros sem parar por longas horas para recarregar (caminhões a diesel fazem muito mais que isso), precisaríamos que ele carregasse baterias que representariam 25% do seu peso. Mais baterias, menos carga, frete mais caro. Um caminhão com autonomia de 1500 a 2000 km (comum em veículos a diesel)? Esqueça. Precisaria de tantas baterias que não poderia transportar nenhuma carga!
E os aviões? Usam querosene de aviação. Atualmente, quando decola, um avião a jato comercial carrega de 20 a 40% do seu peso de combustível. Mas pode transportar cerca de 300 passageiros e voar a mil quilômetros por hora por mais de 20 horas. O melhor avião elétrico da atualidade transporta dois passageiros por até três horas numa velocidade de no máximo 340 quilômetros por hora. Há planos para produção de aviões maiores, mas ainda assim só seriam viáveis em voos curtos.
Navios e aviões produzem 20% dos gases de efeito estufa (GEEs) emitidos pelo setor de transportes. Já existem navios elétricos (ou navios usando uma combinação de energias elétrica e eólica). Mas os navios convencionais transportam 200 vezes mais mercadorias e percorrem rotas 400 vezes mais longas do que eles. E queimam um óleo combustível que é uma espécie de resíduo da destilação do petróleo e que, por isso mesmo, é extremamente barato. Qualquer outra opção aumentaria tremendamente o preço do frete. Se as pessoas têm boa vontade de pagar um pouco mais para salvar o planeta, um preço que inviabilizasse as pechinchas chinesas causaria comoção internacional!
Uma opção para o transporte pesado são os biocombustíveis, sobre os quais eu falei mais detalhadamente no vídeo publicado na minha conta do Instagram em 30/11 (@marcomoraesciencia). O biodiesel está ficando competitivo. No Brasil, já misturamos 15% de biodiesel ao diesel comum (embora parte dele seja produzido a partir de gordura animal, cujo consumo queremos reduzir, certo?). Mas a produção de biodiesel no mundo é de 2 milhões de barris por dia, bastante abaixo do consumo de diesel, que é de 27 milhões de barris por dia. É viável, mas há um longo caminho a percorrer. Uma curiosidade: quando Rudolf Diesel apresentou seu motor de combustão interna em 1893, ele utilizou óleo de amendoim. Biodiesel!
Outra opção é o hidrogênio. O hidrogênio não é, na verdade, usado diretamente. Um veículo movido a hidrogênio é impulsionado por células de combustível que convertem o hidrogênio em eletricidade para alimentar um motor elétrico. O processo envolve várias etapas. Primeiro, o hidrogênio é armazenado em tanques de alta pressão no veículo. Em seguida, o hidrogênio é fornecido às células de combustível. Dentro das células de combustível ocorre uma reação eletroquímica. O hidrogênio é separado em prótons e elétrons. Enquanto os prótons passam por uma membrana, os elétrons seguem por um caminho externo, criando eletricidade. Depois os prótons se combinam com os elétrons e com o oxigênio do ar para formar água, o único subproduto desse processo.
A vantagem desse processo é que os veículos seriam equipados com tanques de hidrogênio, e teriam mais autonomia. As células de hidrogênio têm um potencial maior para serem utilizadas por vários tipos de veículos, incluindo caminhões pesados, barcos e aviões.
O problema é que a maior parte produção de hidrogênio é, atualmente, realizada a partir de gás natural ou carvão, em processos que geram CO2. Esse tipo de hidrogênio tem sido chamado de “hidrogênio cinza” (na verdade aquele produzido usando carvão é chamado “hidrogênio marrom” por ser ainda mais poluidor). Por outro lado, o “hidrogênio verde”, que é produzido utilizando-se energia elétrica, é muito caro. E representa menos de 1% do hidrogênio utilizado comercialmente. É uma solução tecnicamente viável. Mas se quisermos de fato utilizar a opção do hidrogênio de maneira sustentável teremos que substituir os 99% de hidrogênio cinza (e marrom), e ainda aumentar em muito a produção total. Vai demorar.
Na aviação, que é responsável por 2,5% das emissões de GEEs, estão desenvolvendo o SAF (sigla em inglês para Combustível Sustentável de Aviação).
O termo se refere a uma mistura de diferentes fontes que incluem biocombustíveis, resíduos de óleos de diversos usos (inclusive o de cozinha), e até metano de depósitos de lixo. O cálculo é meio complicado, mas as agências reguladoras de diversos países já atestaram que seu uso resulta numa redução de emissões de até 80%. Eu tenho lá minhas dúvidas sobre esse cálculo, mas usar o SAF é melhor que queimar querosene.
Em resumo, há alternativas para substituir o uso de combustíveis fósseis, sendo o mais promissor a curto prazo o uso de biodiesel na frota de caminhões. O SAF em aviões pode ser uma boa solução a curto e médio prazo. Em navios, a substituição deverá ser muito mais lenta e complicada. Todos esses casos apontam que levará pelo menos algumas décadas até conseguirmos transportar cargas de modo sustentável. É por essas coisas que os países produtores de petróleo não estão muito preocupados com sua substituição (até patrocinam as conferências da ONU sobre o clima!).
Semana que vem vou falar sobre a emissão de gases de efeito estufa e os processos de aquecimento e refrigeração. Mesmo num mundo mais quente haverá dias frios, quando as pessoas vão ligar seus aquecedores (na maior parte do mundo usando gás natural). Por outro lado, o aquecimento global vai demandar muito mais refrigeração. E muita eletricidade. Mais complicações vem por aí! Até lá!
Observação: antes disso ainda falarei sobre transportes e emissão de GEEs no vídeo que vou postar quinta-feira, dia 7/12, na minha conta do Instagram: @marcomoraesciencia. Dá uma conferida!