Saio para caminhar com o cachorro, como sempre faço quando chego do trabalho. A rua está meio escura e deserta, como sempre, a essa hora. Em sentido contrário, vem outro homem, com seu cão. Os cães logo se cheiram e abanam os respectivos rabos, enquanto eu e o homem sacudimos as cabeças, em sinal contido e formal de um boa noite comedido entre dois estranhos. De repente, como que das profundezas do nada, ele pronuncia o meu nome com algum espanto, reconhecendo-me, apesar da semiescuridão.
Arregalo os olhos para ver melhor: Marcelo Vergara, colega de Faculdade. Fazia anos que não nos víamos, talvez por sermos reservados, os dois, mesmo em tempos de redes sociais e grupos de WhatsApp. Falando em tempo, já não há muito para aquele encontro. Ele precisa devolver o cão da mãe idosa, no prédio ali em frente, e eu preciso comer alguma coisa. Por isso, tentamos afoitamente botar quase quarenta anos em dia. Fulano, Sicrana, lembra disso? daquilo? tal professor, aposentado, tal professora, morreu, até que de repente surge, no meio daquele quase deserto, a morte de Carlos Magno.
Carlos Magno Maurer das Neves, meu amigo próximo, durante os anos de Faculdade. Também era reservado a ponto de havermos perdido o contato, depois que os dois foram morar fora, ele no final dos 80, eu no meio dos 90. Lembro que, algumas vezes, tentei localizá-lo quando vieram as redes em que nunca fui um habitué, e nada. Ok, uma vez, há uns quinze anos, já de volta a Porto Alegre, vimo-nos de passagem na Rua Padre Chagas, um abração saudoso, dois sorrisos naturais, mas um corria para lá, o outro para cá, e nenhum dos dois anotou o contato do outro. Marcelo interrompe a minha viagem para dizer que tem o número da esposa do nosso amigo, pode me passar também, já o da mãe ele perdeu, sabe que mora sozinha, longe de Porto Alegre.
Magno morreu num acidente de carro há pouco mais de dois anos, parece que perto da PUC. Pode haver sofrido antes um infarto, ao volante, como o pai. Enquanto ouço, sem que o Marcelo veja a minha lágrima no escuro, novas cenas me invadem, rasgando tempos bem díspares: estamos na piscina do União matando uma aula de Patologia, estamos na casa dele, no Jardim Botânico, estudando Bioquímica, estamos na minha casa, estudando Cardiologia ou Psiquiatria, estamos subindo a Serra no seu Fusca com as nossas namoradas que não se davam direito, o pneu esquerdo traseiro furou na primeira curva de Igrejinha, ele só comia comida natural, corria todos os dias à tardinha, inclusive quando morou em Paris, amava jazz, cinema, era leitor.
(Mais tarde, sonharei algumas das minhas mortes, sem tempo ainda de sonhar a dele, mas o suficiente para pesar o começo da manhã.)
Do jeito que a luz permite, Marcelo e eu passamos os nossos números de Whats. O tempo agora acabou mesmo e não dá para quase mais nada que não sejam dois boas noites firmes com um abraço apertado, sem que as cabeças precisem balançar formalmente, enquanto os cães se dão uma última cheirada, com os rabos balançando muito, e ignorando o tempo que acabou.
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Foto da Capa: Gerada por IA