Consegui um estágio no setor PIS Empresas da CEF em 1991. Ganhava mais do que no meu primeiro estágio no Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul (IPE).
O IPE fica na Avenida Borges de Medeiros, em Porto Alegre. Eu trabalhava na sobreloja, de frente pra avenida, no setor de benefícios. O prédio é de vidro e ali onde eu ficava não tinha ar-condicionado. Tive de levar o ventilador de casa. Nesse dia, entrei pelos fundos, porque tinham de colocar uma etiqueta nele pra saberem que era meu e não do estado. Eu gostava do restaurante no último andar do prédio, era um buffet gigante, eu me sentia tão advogado de crachá, com minha calça e camisa social da C&A.
O setor de PIS Empresas da CEF ficava na Rua General Vitorino, no centro de Porto Alegre. A CEF era perto da Masson, uma joalheria que eu considerava mais eterna que os diamantes que ela vendia. Ela fechou depois de 120 anos e passei a desacreditar na eternidade para sempre.
Não tinha restaurante no estágio da CEF, porque chegávamos depois do almoço. Ainda assim eu ganhava mais. Tinha uma sala de Telex, com uma operadora de Telex. O Telex era um tipo de telégrafo instalado no Centro de Porto Alegre ao invés de uma estação de trens no velho oeste.
Na época do pagamento do PIS, as caixas com os carnês de todos os trabalhadores do estado chegavam no nosso setor. Então pegávamos relações de nomes dos funcionários das PJs que tinham o convênio do PIS Empresa, abríamos uma caixa com centenas de carnês, achávamos o carnê correspondente, dentro do carnê, com dezenas de boletos, achávamos a folha do beneficiário, a destacávamos e colocávamos numa pasta separada para que ele fosse pago diretamente na folha do empregador sem ele precisar comparecer à agência bancária.
Comecei a trabalhar na CEF em abril. Em dezembro, pedi pra minha chefe dois dias de folga para ir ao Réveillon em Santa Catarina com meu colega de faculdade Roberto. A chefe me deu um sermão sobre minhas responsabilidades e a oportunidade que eu tinha de estar trabalhando ali, que estagiário não tinha férias e acabou dizendo que não abria exceções. Peguei triste o ônibus Ipiranga-PUC que me levava pra faculdade, sentei na janela olhando pra fora sem ver a rua. A vida adulta havia aprisionado aquele guri que com 15 anos tinha ido de ônibus sozinho pra Bahia.
Cheguei no prédio do Direito e vi direto o Roberto que sorriu pra mim. Retribui e não falei nada sobre a merda que tinha dado com a viagem. Ele começou a falar de uma festa que tinha de ir na Lagoa da Conceição em Floripa no Réveillon.
O pai do Roberto chamava ele de Bobo. Dizia que Bobo era apelido de Roberto na Itália. Ele tinha vindo pequeno pro Brasil. Não sei se é verdade, mas o apelido colou mais que tatuagem.
Bobo era descolado, fumava maconha atrás do prédio da Odontologia antes da aula, no recreio e depois da aula. O cara bolava um baseado melhor que a Souza Cruz fechava seus cigarros. Uma vez fomos para Garopaba com ele dirigindo e contando que tinha pego uma colega de aula, que antes do sexo tinha mandando ele lavar as dobrinhas. Ele falava, ultrapassava caminhões na BR101 não duplicada, com uma mão esmurrava o beck, abria a seda, acomodava a erva, passava a língua na cola e fechava o baseado. Tinha a arte de um Michelangelo pintando a Capela Sistina.
As dobrinhas do Bobo passaram a fazer parte das piadas da nossa turma do direito, assim como o “faz xixi bobinho”. Essa última aconteceu depois da aula. Combinamos de ir no Bar do Maza, que fica atrás da PUC, na Avenida Bento Gonçalves. Bobo disse pra esperarmos pra ele ia dar uma mijadinha. Começou a demorar e fomos todos no banheiro, pé por pé, para descobrir o que estava acontecendo. Olhamos por baixo da porta e ele estava sentado no vaso fazendo o número 2. Nascia a lenda de que o Bobo mijava sentando, com o anelar colocando o pinto pra baixo e balbuciando: “vai bobinho, faz xixi bobinho”…
No final da aula, fomos pro bar Lourival, ali na Avenida 24 de Outubro, e confessei que não tinham me dado os dias para ir no Réveillon. Ficou um clima triste. Lá pelas 2h da manhã comuniquei que tinha mudado de ideia e iria largar o estágio para viajar. Não iam ser 2 dias de folga, mas todo o verão de folga. Libertei temporariamente minha juventude da gaiola da idade adulta. E disse para pensarmos maior e ir mais longe. Bobo topou na hora e decidir largar o estágio que fazia num escritório de advocacia.
Depois de semanas de combinação decidimos ir para Alcobaça no sul da Bahia. Depois do Natal saímos de ônibus de Porto Alegre, paramos em albergue da juventude em São Paulo, depois de alguns dias fomos para o Rio de Janeiro, onde passamos o Réveillon; seguimos para Guarapari no Espírito Santo e de lá para Alcobaça. Não gostamos de Alcobaça e seguimos para Porto Seguro onde ficamos janeiro e fevereiro no Albergue da Juventude de Coroa Vermelha. Aí é outra longa estória.
Em Porto Seguro, soubemos que o Carnaval de Laguna, Santa Catarina, era pegado. Às vésperas do Carnaval voltamos para Porto Alegre para pegar o carro e ir pra lá. Bobo contou que a dona do escritório que ele trabalhava antes de ir viajar tinha convidado ele para ficar na casa que ela tinha alugado. Enchemos o carro de cerveja que compramos numa oferta das Lojas Americanas e partimos pra Laguna ouvindo fitas de Axé trazidas diretamente da Bahia.
Chegando em Laguna perguntei pro Bobo onde ficava a casa e ele disse que era uma casa branca na Rua João Pinho ou João Pinto. Acontece que a tal rua era gigante e a quantidade de casas brancas superava os Pueblos Blancos da Andaluzia. Foram horas batendo nas casas brancas sem êxito. Desesperançados, imaginando se dormir no Monza todo o Carnaval seria bacana, fomos nós e nossa cerveja pro Mar Grosso, onde carnaval tava torrando.
No calçadão do Mar Grosso mostramos o gingado da baianidade nagô adquirida em quase dois meses de axé raiz, das danças que fazíamos pra turistas em Porto Seguro pra conseguir dinheiro pra beber na praia, da pele bronzeada pelo sol da Bahia.
Já era noite e vimos que tinha uma roda no calçadão. No meio dela, uma morena linda com uma bermudinha de brim que parecia ter sido pintada naquelas duas coxas maravilhosas e um top branco servindo de ninho pra seios perfeitos. Ela descia até o chão e subia com um sorriso maroto sob o olhar em transe daquela plateia carnavalesca. Daí o Bobo grita: “-Minha chefe, a guria da casa”. Não sabia se eu comemorava a casa ou a chefe dele, ou as duas coisas. Também estava em transe.
Parece que ela perdeu o entusiasmo quando viu o Bobo se aproximando sorridente comigo de arrasto. Acho que o convite pra ficarmos na casa dela tinha sido tipo carioca dizendo: “- Depois passa lá em casa”. Não tinha sido um lapso ele não ter o número da casa. Nem a rua que ele tinha o nome era o da casa dela. A maconha tinha deixado algumas sequelas no meu amigo, tipo não perceber sutilezas.
Me afastei com minha cerveja enquanto eles conversavam. Ele gesticulando com os braços; ela negativamente com a cabeça. No final, ele chamou e me apresentou pra Denise. O nome daquele monumento era Denise. Denise com “s”. O trio elétrico disparou uma música baiana e começamos a dançar lambada com as coxas entrelaçadas e peitos roçando. Naquela altura, poderia dormir no Monza Hatch todo o carnaval, a viagem tinha valido a pena.
Chegamos de madrugada na casa alugada pela Denise e suas amigas. Não era nem perto da rua que o Bobo tinha dito. As amigas dela eram apenas simpáticas, deviam estar contando com o chamariz da Denise pra se dar bem no carnaval. A dona do imóvel que morava nos fundos da casa alugada acordou e foi pra frente da casa ver o movimento de carros. Nos viu e disse com aquele sotaque catarinense carregado que a casa estava lotada e não podíamos ficar lá. Cansado da viagem, cheio de cerveja na cabeça e tendo passado o dia no carnaval, fiz meu melhor sorriso, fingi que não escutei, dei bom dia, dois beijinhos e entrei na casa enquanto a Denise discutia com ela. No fim, tudo acertado!
O problema é que não tinha um espaço vago na casa pra dormirmos. Ela perguntou se dormiríamos no depósito sem janela no fundo da casa na esperança de desistirmos. Topamos na hora. Nossos dois colchonetes não couberam na peça, tivemos de dobrar as bordas deles pra caberem. O Bobo tinha de levantar as pernas pra fechar a porta. Combinamos de dormir invertidos para evitar uma conchinha. Os dois colocaram a bunda na parede. Estava com o cheiro da Denise grudado em mim depois da lambada do Mar Grosso. Dormi sorrindo. Acabava o primeiro dia do carnaval de Laguna.
Acordei com um beijo na nuca, não sabia que horas eram, a peça não tinha janela. Me grudei na parede. Bobo era gay! Virei pra defender minha dignidade e encostei em dois peitos. Não era ele. A Denise tinha ido no meu quarto. Eu sabia que tinha tido muita química entre nós dois. Nos beijamos muito. Arrancamos nossas roupas sem notar. Meu sonho se realizando. A mulher mais linda do Mar Grosso tinha ido no meu quarto; me acordou beijando meu pescoço. Apesar do absoluto escuro do depósito, conseguia reconstituir cada pedaço daquele corpo roçando minha pele, beijando. Enlouqueci a cada toque, a cada respiração ofegante a cada cheiro. Nem sei quantas vezes transamos. No final desmaiei exausto de cansaço no meu colchonete.
Uma da tarde acordo e vou procurar o Bobo. Estava explodindo de ansiedade pra contar o encontro com a Denise. Ele estava na frente da casa fumando um baseado. Perguntei onde estava todo o mundo e ele respondeu que tinham ido pro Carnaval do centro. Eu falei quase gritando:
Eu: “- Cara, comi a Denise!”.
Bobo: “- Não comeu”.
Eu: “- Claro que comi. Ou era tu de tetinha?”
Bobo: “- Tu comeu a Flávia”.
Eu: “- Que Flávia?”
Bobo: “- A da Odonto. A das Dunas”.
Eu: “- Tá loco!”
Bobo: “Eu tava aqui na frente, ela passou, perguntou por ti, eu disse que tu tava dormindo, ela pediu pra entrar, eu não tinha a chave, então ela pulou a janela, foi no depósito, ficou um tempo, pulou a janela, deu tchau e foi embora”.
PQP! Era a guria do dia anterior. A gente tentou transar nas Dunas do Mar Grosso, mas ou a Duna estava ocupada ou bem na hora passava alguém. Combinamos de pegar o carro e ir pra Praia do Gi que era mais distante do centro. Foi quando fui pegar a chave do carro com o Bobo que encontramos a Denise dançando. Ali acabamos nos separando para nos reencontramos no depósito. A sorte é que na loucura do depósito em momento algum chamei a Denise que era Flávia pelo nome.
Começava o segundo dia do Carnaval de Laguna.
Continua…
Foto da Capa: Reprodução do Youtube