A Flávio Brayner, Jaminho, Alina Spinillo e Bel Hazin.
Reza uma de nossas crenças arquetípicas brasileiras mais caras que o Carnaval, assim como o futebol, seriam criações emanadas desses nossos rincões de Deus (ele próprio brasileiro, aliás). Um breve e superficial exame histórico é suficiente, infelizmente, para invalidar essa crença, que tanto conforta e referência à alma brasileira. O carnaval, especificamente, remonta às Saturnálias romanas, ciclo de comemorações por ocasião do solstício de inverno, no final do ano (dezembro do calendário juliano), com duração entre três e quatro dias, e que traziam elementos claros de um espírito, postura e atitudes carnavalescas. O autor romano Luciano de Samósata refere-se ao “clima” das Saturnálias nos seguintes termos:
“Que ninguém tenha atividades públicas nem privadas durante as festas, salvo no que se refere aos jogos, às diversões e ao prazer. Apenas os cozinheiros e pasteleiros podem trabalhar. Que todos tenham igualdade de direitos, os escravos e os livres, os pobres e os ricos. Não se permite a ninguém enfadar-se, estar de mau humor ou fazer ameaças. Não se permitem as auditorias de contas. A ninguém se permite inspecionar ou registrar a roupa durante os dias de festas, nem depor, nem preparar discursos, nem fazer leituras públicas, exceto se são jocosos e graciosos, que produzem zombarias e entretenimentos.”
Soa familiar… Desde suas origens remotas, portanto, o Carnaval surge no bojo dessa postura contraditória de permissão à transgressão, de proibição do proibir. Esse hiato no funcionamento social habitual não tardou a ser percebido em termos de seu potencial de extravasamento (portanto, controle) de tensões, desde as mais pessoais até as mais amplas, societárias. “Carnaval são só três dias / De cachaça e de folia”. Folia que engaja um séquito, os foliões, numa celebração que já na Idade Média era denominada de “festa dos loucos”, festum stultorum, a celebração do nonsense, algo que tinha elementos cênicos, enredos (como o drama triangular de Pierrot, Arlequim e Colombina), sem ser propriamente teatro, e algo que era uma clareira de vida vivificada, sem ser propriamente vida a sobreviver para além do tempo de embriaguez – “Amor de Carnaval desaparece na fumaça...”.
Ora, esse fio da navalha por onde transitam os foliões tem riscos, mas atrativos imensos. Ao discorrer sobre a natureza psíquica profunda do chiste, da piada, Freud detectou o potencial imenso de gozo do riso que se segue a uma boa piada, piada essa cujo potencial reside justamente em seu caráter insubmisso, inadequado, incorreto, que diz sem diretamente dizer o que se tem prazer em dizer (mesmo um prazer sórdido – mas que prazer real seria integralmente livre de certa sordidez? – questiona Freud). O carnaval abre as fronteiras da vida psicossocial a um tempo em que Bobos da Corte extrapolam os limites dos salões privados em que cometem seus impropérios controlados para a praça pública, onde a instância de autoridade, um certo Rei Momo, acede complacentemente a homens respeitáveis que exibem calcinhas fio-dental, sem que isso lhes traga qualquer desconforto íntimo ou ao seu redor, pois afinal, é Carnaval, é o Bloco das Virgens…
No Carnaval, os Bobos da Corte deixam de sê-lo – agora são cortesãos a justo título, mesmo anões, desdentados, fantasiados em seus farrapos, ao lado dos fantasiados de grife. As célebres tensões interclasse parecem se dissolver, ou arrefecer, ou entrarem em suspensão, para nojo crítico de uns, umas, outros, outras, que não hesitam em enquadrar o Carnaval como lamentável explosão de alienação por parte de quem não devia estar disponível para semelhante esculhambação, semelhante gréia… (em pernambucanês). Etimológica e semanticamente falando, não há como separar o Carnaval, essa festa em que aliens saem das tocas, guarda-roupas e repartições e deslizam em direção à bandalheira, de um tempo de efetiva alienação – de um protagonismo gauche (no sentido medieval) que, mesmo tendo recaídas aqui e ali ao pensar “no que é que vou dizer em casa / quando chegar quarta-feira de cinzas”, mergulha com força na fervura do frevo, pedindo somente o obséquio de que “me segurem que senão eu caio”.
E aqui chegamos ao ponto sugerido desde o título desse curto texto: carnaval, e a carnavalização de onde emerge e à qual retorna representa preciosa pausa de respiração mental, existencial, política, econômica e amplie sua lista. O carnaval intensifica a paródia – esse extraordinário mecanismo que possibilita, num passo de frevo semântico, ressignificar platitudes estabelecidas e áridas, como a sensatez da estabilidade das identidades de gênero, ao som e aos versos de “Maria Sapatão / Sapatão / Sapatão / De dia é Maria / De noite é João”. Proponho aqui a tese, a que tão somente adiro (sem pleitear autoria), que se algo em nossas vidas é blindado a algum nível de torsão transgressiva, algum grau de paródia, alguma possibilidade de nonsense, CUIDADO com esse algo à prova de carnavalização – ele pode transformar você em alguém no mínimo chato (desses que têm a convicção de terem encontrado o Sentido da Vida), e no máximo um Savonarola (epa!) empenhado em criar fogueiras de vaidades, povoar naus de insensatos a descartar, e purificar, purificar, purificar…
Nessa clave, recordei incidente grave com meu, à época, respeitável professor de língua latina, cuja ajuda pedimos para avaliar a justeza do mote e título com que queríamos propor estandarte para um modesto (porém erudito) bloco carnavalesco lúdico cultural e recreativo: Orificium beborium proprietarium nulus – o que pode ser traduzido para o pernambucanês em termos de “Cu de bebo não tem dono”. De fato, um mote de plena sabedoria para os incautos com destino aos altos de Olinda, a certos becos menos iluminados com cheirinho de mijo no Recife antigo. O dileto professor não achou a mínima graça, não nos apoiou e, não fosse a proximidade temporal do tríduo momesco em terras recifenses, o que amolece corações e mentes, teria encaminhado a suspensão dos foliões adolescentes. Tudo considerado, não obstante, nossa cultura latina respirou!
Nesse Carnaval, dê seu jeito, aproveite, tire sua onda, não perca essa oportunidade que a sabedoria histórico-cultural nos possibilita desde as festas de Saturno, e respire, mesmo que seja boca a boca! Pois se “Nem sempre Lily Toca Flauta”, haverá quem persista tocando, e nem sempre não é nunca… (na dúvida em se situar aqui, peça ajuda a um recifense a seu lado… ou ao Google, no Blog do Silva Lima. E em sendo recifense, e se a data desta leitura é esta sexta-feira 28/02, largue esse texto de mão, e corra para o Pátio de Santa Cruz – Lily está saindo, e todas as flautas são bem-vindas, além das clarinetas!
Evoé!
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Foto da Capa: Reprodução do Facebook