Nós, humanos, temos problemas em lidar com a realidade. Num mundo cada vez mais complexo, somos obrigados a lidar com um panorama que muda a cada momento, em que tudo que é sólido desmancha no ar1. O peso de simplesmente existir, de continuar a ser, como disse Milan Kundera, é insustentável.
De certa forma, sempre lidamos com uma espécie de angústia essencial para a qual Kiekergaard, o filósofo dinamarquês que dedicou a vida ao estudo da existência, talvez tenha proposto a melhor definição: “a angústia é a disposição do espírito diante da liberdade de escolhas, a angústia é a vertigem da liberdade”.
O grande responsável por nossa angústia essencial e pelo peso que sentimos ao encarar a realidade é o lobo frontal do nosso cérebro. Uma parte de sua anatomia que os outros animais não possuem, ou o tem pouco desenvolvido.
É ali, no lobo frontal, que se situa o nosso “centro de controle”, que recebe os impulsos das partes mais primitivas ou emotivas do cérebro e decide se vai transformá-los em ação. O “centro de controle” é racional, e é ele que nos permite tomar decisões bem embasadas e nos torna seres civilizados (ainda que ele muitas vezes falhe!).
O lobo frontal, junto com a modificação da estrutura de cérebro, que ocorreu durante a revolução cognitiva (explicada na coluna da semana passada), nos torna capazes de termos uma consciência avançada da realidade à nossa volta, do passado, presente e futuro, e de suas imensas possiblidades e incertezas.
Mas tudo isso é, por vezes, doloroso. Então, fugimos.
Sempre fizemos isso. Festas, fofocas, jogos, fervor religioso e embriaguez por substâncias diversas não são coisas novas. Acompanham os humanos desde que temos registros de nós mesmos. Mas nunca as possibilidades de fuga foram tão abundantes e eficazes como agora.
Então temos o pré-carnaval, o carnaval, o arrastão da Quarta-Feira de Cinzas, o pós-carnaval, os carnavais fora de época, um festival de música atrás do outro, shows de cantores de axé, sertanejos, rap, atrações internacionais.
As músicas são cada vez mais simples, com letrinhas bobas, mas uma batida rítmica e forte que hipnotiza e facilita a memorização. Uma das candidatas à “música do Carnaval de Salvador” se chama “Liquitiqui”, composta por Claudia Leitte (com dois “t” por causa da numerologia) e parceiros. Um dos trechos da letra diz assim:
“…hoje só quero amor, iê, chega de sofrer, vou ver o sol nascer….”
A letra é longa e num supremo de sofisticação para o axé, tem trechos em inglês. Mas a toada é sempre a mesma. A música é uma adaptação do original, um calypso caribenho, um tal de Kes, chamada Liki Tiki.
Segundo uma definição que encontrei na internet: “o refrão liquitiqui pode ser interpretado como um refrão de liberdade e fluidez, onde os pensamentos e ações fluem sem restrições em um estado de alegria e leveza”. Que lindo!
As outras candidatas a “melhor música”, como “Macetando” (Ivete Sangalo e Ludmilla), “Perna Bamba” (Leo Santana e Parangolé), usam a mesma fórmula.
Esclarecendo. Mencionei as músicas da Bahia porque estou aqui no momento (lugar, aliás, que eu e minha família adoramos!). Essas músicas apenas ilustram como se compõe sucessos no momento. Uma batida simples, uma letrinha simplória que remete à alguma emoção básica: amor, ressentimento, paixão, ciúme, fuga….
E isso não é exclusividade do axé. Sertanejo, rap, funk, pagode, e muitos sucessos internacionais seguem na mesma linha.
Também não tenho nada contra o Carnaval. Continua sendo nossa festa mais democrática. Para todas as idades, para todas as raças, para pobres e ricos. Nos últimos anos, com o ressurgimento dos carnavais de rua, ficou anda mais. Como disse Moraes Moreira, na maior parte do Brasil “há um Carnaval em cada esquina”.
O que eu gostaria de ressaltar aqui é que esse sem-fim de festas e festivais com muitos efeitos visuais e sonoros e musiquinhas simplórias tem como foco dissociar as pessoas da realidade. Quanto mais atingem esse objetivo, mais sucesso fazem.
E, no resto do tempo, temos as redes sociais. Aí sim os algoritmos estão cada vez mais eficazes em nos entregar aquilo que mais prende nossa atenção, de preferência pela emoção e não pela razão. Até mesmo quando oferecem temas que parecem altruístas, como textos e vídeos sobre, digamos, a natureza, ou o problema dos refugiados, ou dos ianomanis, os algoritmos visam te emocionar, ou revoltar, ou qualquer coisa menos uma reação racional de pensamento crítico.
Assim, cada um vai cada vez mais vivendo em sua bolha, em que ouve e vê somente aquilo com o que já concorda, de modo a ficar cada vez mais convicto das suas “verdades”. O reflexo é o que estamos vendo: polarização, intolerância, incapacidade de diálogo, de ouvir quem pensa diferente.
E como painel de fundo de tudo isso ainda temos a ascensão da inteligência artificial (IA). Ela já influencia o que você vê nas redes sociais, as sugestões que os canais de streaming fazem para você todo o dia, e assim por diante.
A IA generativa, ou seja, seu uso para criar novos textos, imagens, áudio e vídeos, vai revolucionar a criação humana. Se ainda não está, em breve vai ajudar os músicos a comporem canções que toquem as emoções do maior número de pessoas. Assim como filmes e outras obras de arte. Em mais algum tempo, talvez nem precise mais de humanos para isso.
Aliás, lembra da interpretação do refrão do liquitiqui que eu citei acima? Foi escrito por uma IA…
A sua assistente eletrônica pessoal, as siris e alexas da vida, que ainda são rudimentares, estão evoluindo rapidamente. Daqui a alguns anos, vão saber tudo sobre você. E serão muito úteis. Vão monitorar a sua saúde, avisar seu médico em caso de emergência, descobrir quando aquela viagem com que você tanto sonha entrou em promoção, te dizer o que comprar no supermercado, e até se aquela pessoa é a certa para você.
E mais do que isso. Vai saber quando você não está bem emocionalmente. E como conhecerá você melhor que você mesmo, poderá te dar bons conselhos, conforto, e te guiar para uma vida melhor.
A IA vai controlar a sua vida. Note, o controle aqui não será algo desagradável. Pelo contrário, por sempre saber como você está a IA vai te propiciar uma vida agradável e satisfatória. Mas quem vai controlar a IA? Como você vai saber que não é apenas um autônomo nas mãos de um sistema com objetivos nefastos?
O mundo está cada vez mais complicado e problemas para as pessoas e sociedades aparecem por todo lado.
Ditadores ainda estão presos a conceitos geopolíticos do século passado, fazendo guerras e matando dezenas de milhares de pessoas com seus sonhos imperiais. Generais tramam um golpe de estado diante de nossos olhos.
O nacionalismo religioso e a xenofobia tomam conta do mundo, num momento em que os países deveriam se unir para resolver problemas que são globais.
As atividades humanas estão causando a mudança do clima, uma crise de biodiversidade nunca vista em dezenas de milhões de anos, uma crise hídrica que pode deixar bilhões de pessoas sem água suficiente para viver, poluição química e plástica entupindo terras, mares e nossos corpos.
E no meio disso tudo está você que, inevitavelmente, terá que tomar decisões difíceis daqui para a frente. Eu entendo. É muita coisa ruim ao mesmo tempo. Dá mesmo vontade de largar tudo e sair atrás do trio elétrico!
Vá, então. Se divirta. Não é proibido. Precisamos manter nossa saúde mental. Rir e se divertir é necessário.
Mas não esqueça que os problemas não vão embora pelo fato de você ignorá-los. E para superá-los é preciso antes de tudo conhecê-los. E também conhecermos a nós mesmos, para continuarmos seres pensantes capazes de tomar suas próprias decisões. A opção pela ignorância não é uma boa ideia.
Vejo você depois do Carnaval! Liquitiqui!
1Essa frase foi, originalmente do Manifesto Comunista escrito por Karl Marx e Friedrich Engels, descrevendo como era o mundo criado pela burguesia. Depois, foi utilizada como título pelo filósofo e escritor Marshall Berman, num excelente ensaio sobre a modernidade (All that is solid melts into de air: the experience of modernity), publicado em 1982.
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