Não sei se isso existe ainda hoje, mas na época em que eu morei no interior do Rio Grande do Sul, há quase trinta anos, não era incomum a presença de carpideiras nos velórios, mulheres contratadas para chorar pelo morte de um defunto alheio, de um morto que elas sequer conheciam.
Ficavam o tempo todo ao lado do caixão, lamentando-se pela partida de alguém que pouco ou nada significava para elas. Quanto mais próximo do enterro propriamente dito, quanto mais perto de o cadáver finalmente encontrar o solo, mais as carpideiras se faziam ouvir. Gritavam mais alto, choravam abraçadas, consolando umas as outras pela morte de um completo desconhecido.
Elas faziam uma dupla função. A primeira era povoar mais um velório que se suponha que teria poucos presentes, como aquele de alguém que mora muito longe da família ou que não muitos laços pela vida. A segunda função era de facilitar a despedida daqueles que eram realmente familiares ou conhecidos do defunto. As lágrimas protéticas das carpideiras preenchiam o silêncio do ritual, além de validarem a dor de quem deveras a sente.
Um fato curioso é que carpere, no latim, significa tanto aproveitar, desfrutar, saborear, quanto romper em pedaços, destruir, lacerar. Estranho encontro entre a fruição e a destruição, entre o deleite e a penúria. Apesar de incômodo, este enlace entre vida e morte é comum, faz parte da nossa vida cotidiana. Como quando sentimos prazer ao fumar um cigarro, por exemplo, ou ao bebermos mais do que deveríamos. Digo mais, caro leitor: talvez o desfrute aí seja justamente da sensação de ter sobrevivido àquela tragada ou àquele gole. O prazer como um trunfo sobre a morte.
Entre um copo e outro (não fumo), penso nas carpideiras do interior do estado quando abro o Instagram no dia do falecimento de alguma figura pública.
Parece haver uma obrigação de se dizer dilacerado, consumido, tomado, acabado com a morte de um cantor, escritora ou atriz. Quem não posta algo mostrando toda o seu suposto vazio na alma quando alguém famoso morre parece se sentir de fora de uma espécie de velório digital.
Ok, admito que a minha geração esteja chegando em uma idade em que os nossos ídolos começaram a morrer. Foi o que aconteceu com a partida da Rita Lee, da Gal Costa e, mais recentemente, do escritor tcheco Milan Kundera. Muitos de nós nos vemos como a ovelha negra da família enquanto suportamos a insustentável leveza de ser ao ver a vida acontecendo como um dia de domingo.
A gente começa a ficar mais atento aos próximos shows do Caetano, do Gil, da Bethânia. De fundo, aquele sussurro nos dizendo que temos que aproveitar e comprar ingressos para ver estas pessoas, afinal pode ser que sejam as suas últimas apresentações.
Faz sentido nos sentirmos tristes ou até mesmo abandonados quando alguém que nos escreveu ou nos cantou morre. É como se perdêssemos uma voz que nos ajudava a entender quem somos, um olhar que narrava a vida que compartilhamos com os contemporâneos. E claro, quando a geração anterior à nossa começa a morrer, nós passamos a lidar com o fato de que os próximos seremos nós.
E também entendo que a elaboração do luto é um processo coletivo, que nós precisamos lembrar muitas histórias e falar muito sobre o morto para transformá-lo de corpo em palavra. A desmaterialização de alguém passa pela nossa capacidade de narrar quem se foi.
Ou seja: faz sentido pra mim a comoção social a cada vez que alguém importante morre. Entretanto, fico me perguntando se, muitas vezes, essas demonstrações públicas de pesar não são só uma forma de não ficar de fora do assunto do momento.
Quando vejo algum influencer lamentar toda e qualquer morte, me inquieto com este imperativo de visibilidade a qualquer custo. Afinal, sabemos bem que o algoritmo das redes sociais favorece esse tipo de postagem que está em voga: seja o falecimento de um escritor, seja a última treta do Big Brother.
O virtual é um espaço com muitos problemas de memória. Cego em seu olhar excessivamente voltado ao presente, dificilmente deixa acumular passado, não constrói história. Assim como lamentamos o falecimento de Milan Kundera, poucos dias depois nos tornamos carpideiras da Sinead O’Connor e até esquecemos do autor de Risíveis Amores.
E isso se expande para qualquer assunto. As redes sociais convidam a que se escreva “no quente” do acontecimento, o que por si só já é combustível na fogueira do ódio e da má-interpretação. Refletir sobre algo requer tempo, o que é avesso à instantaneidade do que publicamos nas redes.
Mas escrever com o ferro em brasa também tem as suas vantagens. É uma forma, por exemplo, de sentir que se está fazendo parte de um movimento mais amplo, de estar em diálogo com aqueles que também estão elaborando um assunto. É o que está acontecendo agora na bolha em que eu vivo a respeito do filme da Barbie: inteligente crítica ao patriarcado ou material publicitário cínico? Estou inclinado para a primeira afirmação, mas me vejo bem interessado pelas opiniões diversas. Isso expande o mundo à nossa volta, flexibiliza as nossas certezas.
Por outro lado, também falamos muita bobagem quando não nos damos o tempo de refletir.
Neste sentido, creio que a crônica – gênero pelo qual sou muito afeiçoado – seja o estilo que melhor conjuga este paradoxo da escrita sobre o assunto do momento, esta colisão entre o deleite e a dilaceração. Ao mesmo tempo que o cronista anima a discussão sublinhando algum tema do cotidiano, dando volume a um tópico, ele também comparece como aquele que facilita a circulação da discussão, trazendo elementos que talvez ficassem de fora do papo. Por outro lado, a crônica é em geral também um carta de suicídio do autor, estando limitada pela época em que foi escrita.
Neste sentido, o cronista é uma carpideira do cotidiano. Sentado ao lado do caixão que logo levará o defunto assunto ao esquecimento, ele não se resigna que a vida passe sem ser olhada de perto e devidamente valorizada.
O que é bastante diferente do influencier oportunista que coloca a mão no fogo só para exibir as queimaduras em troca de likes e visibilidade.
Entre o cronista e o oportunista há vários likes de distância. É bom saber diferenciar.
Foto: carpideiras do início do século XX, Biblioteca do Congresso dos EUA.