Prezado Walter,
Parabéns pela conquista que está deixando a nação orgulhosa pela qualidade da produção do cinema brasileiro. Tomo a liberdade de escrever essas linhas porque já ouvi falar muito bem de ti. E foi pela boca de Frans Krajcberg, quando esteve em Porto Alegre, em 1999.
Naquele tempo, estava sendo estruturada a Secretaria Estadual do Meio Ambiente do RS, e ele foi um dos convidados para palestrar na Semana Estadual do Meio Ambiente juntamente com Socorro Nobre. Teu filme sobre a troca de cartas entre os dois provocou um belo debate no palco do Theatro São Pedro. Na época, coordenava a assessoria de comunicação da entidade promotora, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental. Tive o privilégio de ser a cicerone do Krajcberg, junto com meu marido. Do RS, o que lhe interessava era levar sementes. Conseguimos várias com amigos ligados à botânica. Ele foi incrível, super simples e interessado em saber coisas da natureza do RS. A bordo do nosso Corsinha, levamos ele para encontrar e conhecer várias pessoas, entre elas o inesquecível artista Francisco Stockinger (preciso achar as fotos em papel daqueles encontros).
Faço esse preâmbulo para ousar fazer algumas sugestões para futuros projetos. Creio que seria ótimo se pudéssemos aproveitar essa maré de ondas de valorização do cinema nacional para produzir filmes sobre temas fundamentais, especialmente diante do agravamento da crise ou colapso climático. Como és um cara sensível e já deves ter lido o livro do teu irmão João, Arrabalde, penso que seria mais que oportuno, necessário, realizar um filme que traduza o papel do Brasil, da Amazônia, no contexto planetário.
E aí, vou levantar alguns caminhos para a construção de uma história. Sou filha de descendentes de europeus, nascida no interior do Rio Grande do Sul. Por aqui, muita gente acha que o modelo de crescimento econômico imposto por boa parte dos gaúchos ou filhos de gaúchos para o resto do Brasil é o que deve ser seguido. Que tal uma história que conte a saga da ida dos emigrantes de outras regiões do Brasil para a Amazônia? Seria bárbaro um enredo que contextualizasse o que aconteceu no século passado, conectando com o que estamos vivendo hoje. Seria muito interessante mesclar a saga de pessoas que passaram por tantas dificuldades com os desafios que estamos sentindo na pele. Que tal explicar o quanto nosso comportamento interfere ou é impactado pelos rios voadores, a necessidade da floresta em pé para o funcionamento dos mecanismos climáticos e meteorológicos?
Apesar de alguns grupos, bolhas, na verdade, saberem a conexão entre os distintos sistemas da natureza, infelizmente essa ditadura das telas que captura a atenção de poucos minutos impede que milhões de pessoas compreendam a complexidade do quanto tudo está interligado. Seria excelente ter o teu talento e o da tua equipe para contar o quanto estamos enredados nesse momento civilizatório de mudanças climáticas.
Eis mais alguns argumentos: hoje, o Rio Grande do Sul é um dos Estados que mais sofre com eventos extremos devido a vários fatores, como localização geográfica, passagem de massas de ar polar, correntes marítimas etc. A cultura antropocêntrica de tomadores de decisão e governantes tem sido extremamente exacerbada. Temos vivido situações impensáveis de desmonte na legislação ambiental que muita gente demorou anos para construir. O RS, assim como o Brasil, tem dado ré de trator de esteira na condução de políticas de proteção ambiental.
Ter uma história contando o quanto as numerosas famílias de descendentes de imigrantes foram levando seu jeito de ocupar territórios pelo Brasil afora, seria muito interessante. Milhares de nordestinos e outros brasileiros foram responsáveis pela expansão de culturas distintas dos povos originários. Muitos gaúchos, por exemplo, inauguraram Centros de Tradição Gaúcha, levando hábitos do Pampa para o Norte.
Ao mesmo tempo, esse modus operandi do sujeito que foi incentivado a desmatar e expandir fronteiras no século passado, hoje precisa ser mais do que repensado. Precisa levar que mais gente reflita sobre o que estamos deixando para as novas gerações. O contexto é bem complexo, como foi evidenciado no Arrabalde, livro que inclusive escrevi uma análise aqui na Sler.
Por último, como há muitos interesses na tecitura do contexto histórico, creio que só pessoas com um comprometimento com a construção de um Brasil menos injusto poderiam se debruçar para concretizar tal projeto. O filme O Território, protagonizado pela Neidinha Suruí, poderia ser um bom ponto de partida. Escrevi sobre ele aqui na Sler.
Caro Waltinho, como te chamava o Krajcberg, peço licença para te chamar assim, clamo, encarecidamente, que penses sobre essa ideia. Acredito que está mais do que na hora de todos aqueles que têm algo entre as orelhas fazerem alguma coisa que esteja ao seu alcance para tentar “adiar o fim do mundo”, parafraseando Krenak.
Todos os textos de Sílvia Marcuzzo estão AQUI.
Foto da Capa: Reprodução do YouTube