Confesso que já estava preparado para algumas confusões quando Maria e eu resolvemos que já era hora de fazer nossa “carteirinha” para ter ônibus e metrô gratuitos aqui em São Paulo. De certo modo, nossas primeiras Carteirinhas de Idosos!
Na fila para fazer o cadastramento e receber os documentos que, além do benefício financeiro, ajudam a que tentemos nos convencer de que há sim vantagens em se chegar aos 60 anos, lembrei-me de contar uma história para a minha esposa.
Foi sobre quando, aos 11 ou 12 anos, na querida e saudosa Porto Alegre, eu ia ao cinema com meu grande amigo de infância, Sérgio Silberfarb.
Quando digo grande amigo, é por dois motivos principais. Antes de mais nada, era de fato o meu melhor amigo, mas também porque ele era muito mais alto do que eu. Hoje, tenho 1,71 e Sérgio, 1,90. Naquela época, a diferença de altura era quase a mesma.
Lá íamos nós, crianças, mas os tempos eram outros, sozinhas pelas ruas da cidade. Caminhávamos até o cinema, para assistir a filmes proibidos para menores de 14 ou mesmo de 16 anos.
E sempre acontecia que o porteiro – fosse no Cine Baltimore, no Ritz ou no Rio Branco – deixava o Sérgio entrar, mas na minha vez vinha um:
– Mostra tua identidade!
Eu mostrava surpresa ou insinuava não ter compreendido direito o pedido, o que obrigava o funcionário a insistir e pedir novamente pelo documento, que eu fingia não ter.
– Não sabia que precisava. Eu não trouxe…
Talvez seja memória seletiva, mas o fato é que não lembro de uma única vez em que eu não tenha conseguido entrar. Com um mix de espontaneidade e uma bem ensaiada cara de tristeza, somados a frases e tiradas bem-humoradas, eu nunca era barrado no baile; no caso, no cinema.
Eu adorava ser criança, mas, ao mesmo tempo, queria avançar no tempo. Contava as horas, os dias, os meses e os anos para chegar aos 18, quando teria acesso, sem precisar recorrer ao meu charme (que alguns detratores chamariam de cara de pau) para entrar nos filmes proibidos.
Finalmente chegou o momento e agora sim levaria sempre comigo, orgulhoso, a identidade.
Mas, como dizem os jovens de hoje, “só que não”!
Vivendo em São Paulo, acompanhado por amigos, eu até que não me importava em ter que mostrar o documento, em esfregar na cara do porteiro que este jovem aqui, com cara de guri, já estava sim na maioridade.
Mas na hora de ir ao cinema com as gurias!
Aí meu coração batia mais acelerado e eu suava frio à medida que me aproximava do cinema. Na porta, a guria entrava sem qualquer problema e lá vinha o porteiro:
– O senhor já fez 18 anos?
Alguns eram mais cruéis:
– Mas o senhor não tem 18 anos!
Suprema humilhação ter que provar que eu já era um homem feito. Talvez ter mostrado todas as vezes a carteira de identidade tenha atrapalhado demais meus mirabolantes planos – ou sonhos – para o pós-filme.
Minha primeira e famosa barba cerrada, que fez com que eu passasse a ser chamado não mais de “Gaúcho” por alguns dos amigos paulistas, mas de “Companheiro Airton”, não veio, confesso hoje, de qualquer inspiração política ou humanitária.
Foi para parecer, se não mais velho, ao menos da idade que eu realmente tinha!
Mas agora seria diferente. Maria e eu estávamos na fila e já imaginava o prazer que teria ao entrar nos metrôs e ônibus desta Paulicéia Desvairada!
Eu me aproximaria dos lugares reservados para idosos. Haveria alguma pessoa que permaneceria sentada. Olharia para ela, que continuaria sem se mexer, impávida, como se não fosse com ela.
Eu diria:
– Você pode se levantar, por favor. Esse lugar está reservado para mim.
Surpresa, ela me olharia de baixo para cima e exclamaria indignada:
– Mas o senhor não tem ainda 60 anos!
Paciente, orgulhoso, retiro o cartão e o apresento ao(a) jovem.
– Já tenho 62.
– Mas é incrível, o senhor não parece!
Mas não é assim que tem acontecido. De posse da carteira, coloco-a no bolso da camisa para ser retirada rapidamente.
A cena que descrevo agora aconteceu no primeiro dia, mas se repetiu de forma semelhante na maioria das vezes.
Entro no metrô. Mal ultrapasso as portas do vagão e uma pessoa já se levanta.
Nem espera chegarmos perto!
A moça negra, talvez de 20 anos, com trancinhas bonitas, óculos coloridos e alguns livros nas mãos, diz:
– Por favor, pode se sentar.
Maria está ao meu lado. Mas ela fala: é comigo.
Como há mais lugares ocupados indevidamente, digo em alto e bom som:
– Minha mulher também tem mais de 60!
Rapidamente, um homem de meia-idade se levanta e cede o lugar. Constrangido, pede desculpas.
Maria me olha desconfiada. Não tem certeza se fui um cavalheiro ou se estava inconformado por só eu ter sido identificado como um ancião.
Como escrevi há pouco, situações parecidas se repetem cotidianamente. As portas (no caso, as cadeiras) se abrem para mim e alguém logo se levanta, sem que eu tenha que pedir licença, olhar feio ou mostrar a bendita carteirinha.
Muitas vezes, claro, como eu e Maria entramos juntos, ao perceberem que alguém se levantou para que eu pudesse sentar, alguém também cede o lugar para a Maria.
Não que todo mundo seja educado. Aconteceram algumas situações em que ninguém se levantou.
Nessas poucas ocasiões, geralmente não foi por desatenção, por não perceberem que já estou na idade de ocupar o assento dos idosos, assim como de receber meias e pijamas no aniversário.
É por falta de educação mesmo!
Dá para perceber que a pessoa observa quando entramos e imediatamente abre um livro ou começa algum joguinho no celular, simulando máxima atenção. Também tem aqueles que fingem estar dormindo e, de quando em quando, abrem um cantinho dos olhos para espionar se ainda estou em pé, aguardando que tire o traseiro de lá!
Mas não espero muito. Ao primeiro balanço do metrô, eu tropeço e piso de leve no pé do malcriado:
– Desculpe-me. É que não tenho mais muito equilíbrio. — explico.
Dias atrás, sentou-se diante de mim e da Maria um homem alto e musculoso. Devia ter 30 anos de idade.
– Meu amor, claro que não posso pedir para ele se levantar, sussurrei em voz alta (e poucas coisas me irritam tanto quanto as pessoas que sussurram alto). E prossegui, com um sussurro ainda mais contundente, que não deixasse dúvida de que o tipo escutaria:
– Talvez ele esteja grávido. As pessoas grávidas têm tanto direito quanto a gente…
Ele se levantou, com cara de poucos amigos.
Levei uma bronca da minha esposa, mas felizmente não na frente dele.
– Prometa que não fará mais isso. Você acabará apanhando!
Se há décadas eu sonhava em avançar o tempo, talvez agora desse para recuá-lo um pouquinho.
– Tu poderias fazer luzes — sugeriu minha mãe, que acrescentou:
– Veja, o teu irmão é mais velho do que tu, mas parece mais novo. É que ele não tem um único fio de cabelos brancos. E é tudo natural, acrescentou.
Achei que não vale a pena.
No passado, uns 50% das minhas amigas eram alucinadas pelos morenos jambos. As outras eram apaixonadas por Richard Gere. Moreno jambo nunca cheguei perto de ser, mas do Richard Gere já tenho ao menos o cabelo…
– Não, mãezinha. Sabes que adoro os teus conselhos, mas não vou mexer no meu cabelo…
Ainda assim, sem muito alarde, comecei o mesmo recurso da faculdade: deixei a barba crescer!
Se antes ela me fazia aparentar mais velho, agora quem sabe deixaria o rosto revigorado. Um coroa de barba marcante, quase ruiva e cerrada!
Mas logo cortei-a. A barba estava ainda mais grisalha que os cabelos. E meus velhos amigos já começavam a me chamar de “Companheiro Noel”, com variações para “Vovô Noel”.
Aos poucos estou me acostumando.
Entro no metrô e já recebo com alegria a gentileza das pessoas. Nem sempre, claro. Dias atrás, uma velhinha se levantou.
Fui quase rude:
Pensei em dizer: “Que coisa ridícula.” Todo mundo vê que a senhora tem pelos menos 15 anos a mais do que eu.”
Mas apenas falei:
– A senhora volte para seu banco, por favor.
– É que vou descer agora nessa estação. Foi por isso que levantei…
Mas tenho, sim, me acostumado e visto com satisfação que as pessoas costumam ser gentis.
Sim, é bom contar com a generosidade das pessoas e a força das leis que garantem assentos prioritários para idosos, pessoas com deficiência, gestantes, pessoas com crianças de colo e pessoas com mobilidade reduzida!
Fiquei com vontade de escrever essa crônica quando eu e Maria nos preparávamos para descer na estação Alto do Ipiranga, há pouco mais de duas horas, num final de tarde ensolarado em São Paulo.
Estávamos em pé e nosso reflexo apareceu na porta do metrô.
Olhei rapidamente para o casal maduro à minha frente.
Gostei do que vi: um simpático homem grisalho e, que esplendor, uma linda, charmosa e encantadora mulher grisalha, que estava ao seu lado.
Meu corpo estremeceu, mas em momento algum perdi o equilíbrio. Pelo contrário, segurei sua mão e seguimos de mãos dadas em direção à luz e à rua. E assim voltamos caminhando até nosso apartamento, a três quilômetros de distância da estação do metrô.
No percurso todo, como sempre fazemos, conversamos sobre diversos assuntos, especialmente sobre nossos planos: o que faremos hoje, amanhã, no ano que vem. Enquanto esses dois jovens caminhavam pelas calçadas esburacadas de Sampa, lembrei-me de uma famosa frase, geralmente atribuída a Edson Godoy Bueno: “As suas memórias nunca podem ser maiores que seus sonhos”.
Já em casa, enquanto escrevo o final desta crônica, penso que já não quero mexer no tempo.
Não, não quero avançar nada!
Não quero recuar nada!
Quero é usufruir da eternidade que é caminhar de mãos dadas com a mulher que amo!
Ainda assim, mesmo que pareça contraditório, quero dizer a você que, se pudesse escolher uma única coisa, um único detalhe, para mudar em minha vida, seria ter conhecido a minha esposa alguns anos antes.
Comovido, procuro no YouTube e coloco a música “Valsa Brasileira”, do Chico Buarque, para tocar:
“Vivia a te buscar
Porque pensando em ti
Corria contra o tempo
Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu
Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Pra encostar no teu
Subia na montanha
Não como anda um corpo
Mas um sentimento
Eu surpreendia o sol
Antes do sol raiar
Saltava as noites
Sem me refazer
E pela porta de trás
Da casa vazia
Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver
Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer…”
Foto da Capa: Freepik
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