Há poucos dias, houve importante decisão do CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ), que julgou improcedente o Pedido de Providências 0002889-82.2022.2.00.0000, apresentado pelo INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA – IBDFAM, para que fosse revogado o inciso II do Art. 513 do Provimento 149 do CNJ, que assim dispõe:
“Será indispensável, para fins de registro e de emissão da certidão de nascimento, a apresentação dos seguintes documentos:
II – declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários;”
A revogação deste dispositivo é muito importante porque ele impossibilita que casais homoafetivos registrem a criança como sua filha, devido à ausência da declaração acima mencionada, impede o seu registro como filha de ambos e, por conseguinte, o devido reconhecimento daquela família.
Importante salientar que a reprodução heteróloga assistida é aquela na qual é utilizado material biológico de terceiros (óvulos ou sêmen), que pode ser de um único doador ou de um homem e uma mulher se houver a doação de um embrião.
Entendo que o CNJ teve boas razões jurídicas e éticas para indeferir o pedido, mas ainda considero que a realidade fática da sociedade brasileira, e que o melhor interesse da criança, que tem direito à convivência familiar, de ser reconhecida e registrada por seus pais, ainda que tenham descumprido de realizar a reprodução assistida em uma clínica, centro ou serviço de reprodução humana, deveria ter prevalecido.
Essa decisão do CNJ que impede que a criança seja registrada como filha dos seus pais afeta a sua própria dignidade e o direito de ser reconhecida como filha de quem a ama e lhe cuida como pai, vai de encontro ao reconhecimento da paternidade socioafetiva tão aceita no direito brasileiro. Permitir que somente o pai biológico seja reconhecido como pai é uma afronta àquela realidade familiar e à dignidade da criança e dos pais.
Este excessivo rigor jurídico irá causar uma disparidade na relação dos filhos de casais homoafetivos. Somente aqueles que tiverem condições econômicas de custear a reprodução assistida em uma clínica especializada poderão ser reconhecidos como pais. Já aqueles que tiverem realizado a inseminação caseira, que afetivamente são tão pais quanto os demais, não terão o direito de ser reconhecidos como pais, o que tem profundos impactos jurídicos e morais. Veja-se que, já de início, um dos pais não terá direito à licença paternidade, o poder familiar (antigamente conhecido como pátrio poder) será de apenas um dos dois. Em caso de falecimento do socioafetivo, a criança não será tida automaticamente como herdeira, poderá não receber a pensão do pai socioafetivo caso ele faleça e, em caso de separação, estarão prejudicados os direitos do pai socioafetivo, além de haver um constrangimento e um imenso sofrimento e dano moral de não poder ser reconhecida e registrada como filha de uma das figuras mais importantes da sua vida.
Na decisão do CNJ, estão destacados os argumentos do BDFAM, que a seguir reproduzo:
“Ocorre que a exigência de declaração do diretor técnico da clínica de fertilização parte do pressuposto de que a única forma de se chegar à gravidez seja por meio da técnica de reprodução assistida. Contudo, é consabido que, em face dos altos custos desses procedimentos, as pessoas estão fazendo uso da autoinseminação, também chamada de “inseminação caseira”. Outra motivação que leva à eleição desse proceder é a exigência de anonimato do doador do material genético. No entanto, mediante a ampliação do conceito de filiação, o reconhecimento da filiação socioafetiva e a consagração registral da multiparentalidade, muitas vezes é desejo dos envolvidos no procedimento reprodutivo que o filho conheça sua ascendência genética e que todos desempenhem papéis parentais. No entanto, diante da não apresentação do indigitado atestado, os oficiais do Registro Civil vêm-se negando a promover o registro em nome de ambos os pais, ou seja, daqueles que buscaram a constituição de uma família com filhos. Diante de tal negativa, a criança resta sem o direito fundamental à própria identidade, o que a impede de ser inserida no plano de saúde de quem é sua mãe ou seu pai. De outro lado, impossibilita a um dos genitores de se beneficiar da licença natalidade, o que vem em prejuízo do próprio filho. Apesar de assegurado aos casais homoafetivos acesso ao casamento e à constituição de união estável, por incrível que pareça, a negativa ocorre mesmo quando os pais são casados ou comprovam união estável. Com isso, é desconsiderada a presunção de paternidade estabelecida na lei (CC 1.596). E, em sendo presumida a parentalidade, deve ser promovido o registro. Do mesmo modo, deixa-se de atentar que o parentesco pode decorrer de consanguinidade ou outra origem (CC, art. 1.593). Eis aí a origem da filiação socioafetiva, que pode ser reconhecida mesmo antes do nascimento do filho. Desse modo, comprovada a união ou o casamento, é o que basta para proceder-se ao registro, sem a necessidade de propositura de ação de reconhecimento e muito menos de adoção. Afinal, de adoção não se trata. A negativa do registro obriga os pais a promoverem ação judicial para garantir um direito que deve ser assegurado mesmo antes do seu nascimento. É tão flagrante o descabimento de tal exigência, que o Judiciário vem sendo sobrecarregado, para garantir o direito ao registro. Não há qualquer motivo para obrigar os pais, depois do nascimento, a se socorrerem do Poder Judiciário para que o filho tenha respeitado o seu direito de cidadania. A possibilidade do registro, mediante comprovação perante o registrador civil da existência da parentalidade socioafetiva, é o que basta. Impedir que seja lavrado o registro de nascimento por a reprodução não ter ocorrido mediante intervenção médica, escancara injustificável limitação a um punhado de princípios constitucionais. Restringe o direito à liberdade e à igualdade. Afronta o respeito à autonomia da vontade e o livre exercício ao planejamento familiar dos pais. Além de excluir do filho o direito à própria identidade, desatende seu direito à convivência familiar, garantia constitucional que lhe é assegurada com absoluta prioridade. Não reconhecer que os filhos têm dois pais ou duas mães é se deixar levar pelo preconceito. Não cabe tentar encontrar justificativa para afastar o direito da criança de ser reconhecida por seus pais. Tais posturas, além de infirmarem o princípio do melhor interesse da criança, que tem direito à convivência familiar, afrontam cânones consagrados constitucionalmente: o direito à liberdade e o respeito à dignidade humana. De outro lado, permitir que exclusivamente o pai biológico tenha um vínculo jurídico com o filho assim gestado é olvidar tudo que vem a Justiça construindo por meio de uma visão mais ampliativa da estrutura da família. Ou seja, na realidade, a desequiparação do tratamento conferido aos casais homoafetivos, com base na submissão à reprodução assistida em clínicas especializadas ou à inseminação caseira, é contrária aos ditames constitucionais, sendo uma forma de discriminação em razão da capacidade financeira das pessoas e, portanto, absolutamente ilegítima.”
Todavia, como já se disse, movido por boas justificativas de cunho ético e de segurança médica, o CNJ indeferiu o pedido do IBDFAM.
Vale informar que a Arpen-Brasil e ANOREG BRASIL, por adesão, alegaram, dentre outras coisas, que “A verdade é que as preocupações clínicas, que embasam o quadro normativo que atualmente vincula a inseminação artificial aos estabelecimentos de saúde, não foram feitas de forma aleatória ou com cunho elitista. Fundamentaram-se, antes de tudo, em preocupações relevantes, destacando-se políticas que evitam problemas genéticos, questões de saúde eventualmente decorrentes de relacionamento entre parentes biológicos próximos, lacunas legais que tratem sobre questões éticas aplicadas a pesquisas em seres humanos e limitações para práticas relacionadas ao tratamento com seres humanos não admitidos em lei”.
Já a Consultoria Jurídica do Conselho Federal de Medicina (COJUR/CFM), dentre outros argumentos salientou que:
“Do ponto de vista jurídico, essa COJUR/CFM informa que a Resolução CFM nº 2320/2022 trata das normas éticas para a utilização de técnicas de reprodução assistida, não havendo respaldo à realização da autoinseminação (inseminação caseira), que segue sem regulamentação no Brasil. Além disso, na Resolução CFM nº 2320/2022, Item IV, consta vedação à doação de gametas com caráter lucrativo ou comercial, institui o anonimato dos dados dos respectivos doadores e, ainda, estabelece regras de parentesco entre doadores e receptores. Ou seja, eventual alteração do r. Provimento pelo CNJ, deverá atentar para a total inviabilidade de controle de tais requisitos tidos por necessários na realização da inseminação. Além disso, de se acrescentar que a presente análise se ateve à questão central do Pedido de Providências, especificamente ao art. 17, inciso II, do Provimento nº 63/2017 do CNJ, motivo porque essa COJUR/CFM informa à Diretoria/CFM que, se entender pertinente, reencaminhar para reanálise mais aprofundada de todo o teor da norma. Por fim, quanto à autoinseminação (inseminação caseira), há questões de cunho ético-médico que fogem às atribuições da COJUR/CFM, tais como riscos à saúde, infecções, transmissão de doenças, controle de natalidade e consanguinidade, além de eventual invasão ao ato médico “inseminação”, razão porque sugerimos a remessa do expediente à Comissão Técnica específica para estudo mais detalhado do tema”.
Outrossim, a Câmara Técnica de Reprodução Assistida do Conselho Federal de Medicina, dentre outras ponderações, mencionou que:
“… essa Câmara Técnica não pode coadunar com a inobservância das práticas de segurança cientificamente reconhecidas. Ou ainda pior, com sua supressão ou dispensa consciente, por dever de proteção às pessoas que necessitam de auxílio das técnicas de reprodução assistida para procriação, que movidos pelo legítimo direito de procriação, podem acabar por se colocar numa situação de risco à própria vida. O que se faz primordial pleitear é que todos os cidadãos brasileiros tenham garantido o acesso aos Serviços de Reprodução Humana Assistida, a despeito do nível socioeconômico, localização geográfica de moradia ou outros condicionantes, para que não sejam induzidos a lançar mão de técnicas alternativas espúrias”.
Assim, no final da Decisão, foi salientado pelo eminente julgador que “ainda que na prática, conforme referido pela requerente, a autoinseminação seja um recurso utilizado por várias pessoas em virtude do alto custo da fertilização in vitro ou pela possibilidade de identificação do doador do material genético, não é possível revogar o inciso que garante a realização da reprodução assistida, eis que está em consonância com todo o arcabouço jurídico acerca da matéria em debate, como visto. Sem dúvida, há que se pensar em maior acessibilidade da população hipossuficiente à reprodução assistida, que garanta a segurança jurídica e a proteção à saúde e à dignidade dos envolvidos, estando sempre à disposição destes a proteção estatal através da prestação jurisdicional.”.
Veja-se que o CNJ deixa claro que há de se pensar em maior acessibilidade à realização de reprodução assistida à população hipossuficiente, o que evidentemente salta aos olhos. Mas é justamente pelo reconhecimento da falta de acessibilidade para grande parte da população brasileira à reprodução assistida que penso que essa regra poderia ser flexibilizada. Que essa regra só fosse cogente quando permitisse que ricos, remediados e pobres tivessem o mesmo direito de constituir uma família, o que está muito distante da realidade brasileira e do preço cobrado pelas clínicas médicas.
Da forma como está, somente os ricos podem registrar seus filhos em caso de reprodução heteróloga. Em um país em que um número imenso de pessoas ganha em torno de um a três salários mínimos, quando têm sorte, constituir uma família homoafetiva com filhos registrados ficou dificílimo. Triste Brasil excludente em que as leis protegem mais determinados setores econômicos ou científicos do que a própria existência e reconhecimento das relações familiares.
Com certeza, os exames e cuidados recomendados pela área médica poderiam evitar que nascessem crianças com problemas genéticos, questões de saúde, etc., mas se um embrião foi o suficiente saudável para a criança se desenvolver, não deveria lhe ser negado o direito ao registro por ambos os pais. Ademais, essa preocupação com a saúde não acontece quando as crianças são filhas de casais heterossexuais, que poderão ter os mesmos problemas que os gerados pela autoinseminação, que ocorre na maior parte das vezes através de relações sexuais.
Como destaquei no artigo sobre Reprodução Humana, publicado aqui na Sler, no dia 22 de agosto de 2022, “Para que essas decisões possam ser tomadas em caso de Reprodução Humana Assistida (RHA), será decisivo um correto aconselhamento médico, melhor dizendo, um aconselhamento genético preventivo que levará em conta a existência de doenças ou problemas genéticos que possam afetar o embrião ou o feto, enfim, o ser humano que será gerado, e a possibilidade de evitar ou mitigar tais problemas.
O aconselhamento genético em caso de RHA é tão importante que sua necessidade é reconhecida pela ONU, e sua definição se encontra já no início da Declaração Internacional sobre Dados Genéticos, mais precisamente no artigo 2º, Inciso XIV, abaixo reproduzido em uma tradução livre.
“Aconselhamento genético: procedimento destinado a explicar as possíveis consequências dos resultados de um teste ou exame genético e suas vantagens e riscos e, se for o caso, para ajudar uma pessoa a assumir essas consequências em longo prazo. Tem lugar tanto antes como depois de um teste ou exame genético.”
O aconselhamento genético que ocorrer antes da concepção será denominado “pré-conceptivo”. Nessa fase, será verificada a possibilidade de transmissão de enfermidades ou deficiências genéticas pelos óvulos e espermatozoides dos pais biológicos, o que é fundamental para que os pais ou mães decidam se querem seguir com “o projeto bebê””.
Obviamente, que esse aconselhamento genético “pré-conceptivo antes de os pais decidirem se irão ou não conceber um embrião é muito salutar, mas essa prática não é empregada pela grande maioria dos casais, pois esses exames genéticos e as consultas com tais especialistas são caros ou inacessíveis para grande parte dos brasileiros, e os casais que simplesmente engravidam e têm seus filhos sem tais cuidados podem registrar seus filhos.
Ademais, não podemos esquecer que algumas das pessoas mais brilhantes da história da humanidade e do século passado nasceram com problemas congênitos que as levaram a ter diabetes, problemas cardíacos, câncer, problemas neurológicos. Lembrem-se de que Júlio César, imperador de Roma, era epilético, e que Alexandre da Macedônia provavelmente sofria da síndrome de Guillain-Barré. Imaginou se o embrião do Stephen Hawking, um dos mais importantes cientistas do mundo, tivesse sido rejeitado porque ele poderia desenvolver problemas neurológicos; se o embrião da Ella Fitzgerald, uma das vozes mais lindas de todos os tempos, tivesse sido descartado porque ela teria diabetes; ou se os embriões de Jackie Kennedy e Eva Peron, que foram dois ícones do Século XX, tivessem sido desprezados porque elas poderiam desenvolver câncer. Temos que ter muito cuidado para que não ocorra uma eugenia e um preconceito contra pessoas com alguma alteração genética ou doença. Muitas vezes, são nesses momentos que a humanidade evolui e o conhecimento dá um salto.
A meu ver, esse dispositivo é inconstitucional, pois fere a dignidade da pessoa humana, ou seja, das crianças e dos pais, em razão deste impedimento registral.
E você, o que acha disso? Deixe seu comentário, por favor.
Se este assunto lhe interessa, vale ler também o artigo sobre “Barriga solidária”, que publiquei em 12 de dezembro de 2022 aqui na Sler.
Foto da Capa: Gerada por IA / Freepik
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