Lembro da casa dos meus tios-avós como quem lembra de um esconderijo.
Recordar do cheiro da porcelana sendo queimada no forno – minha tia-avó era artista plástica – e da sala que servia de escritório para o meu tio-avó, arquiteto, serve como um afago. Sempre tentei reproduzir aquela atmosfera nas casas em que morei. E, claro, sempre fracassei: nós nunca conseguimos repetir o passado de forma fiel.
Frequentei estes ambientes especialmente na minha infância e adolescência, e talvez por isso eu tenha tanto desejado ser arquiteto. Gostava de ver os projetos na mesa inclinada, era apaixonado pelas lapiseiras finas e por todos aqueles instrumentos de mensuração: réguas, esquadros, compassos. Além do trabalho no escritório, meu tio-avô foi professor da UFRGS, foi uma destas pessoas cujo nome fica na história.
Sinceramente, não sei porque abandonei o projeto juvenil da arquitetura, mas ainda hoje uma parte de mim imagina como teria sido se eu tivesse seguido este caminho. E também sempre sinto uma ponta de admiração e outra de inveja quando conheço um arquiteto. E, como é típico de todas as escolhas que não fazemos, algo restou.
Talvez inspirado pelo meu tio-avô, me agrada imaginar a memória como uma imensa casa nunca finalizada, como uma obra em permanente reforma, um projeto em andamento, como aqueles que eu admirava.
Não gosto de pensar a memória como uma linha reta, como seria o habitual. Não entendo o tempo como uma força unidirecional. Não me faz sentido supor que as coisas mais antigas são menos presentes, ou que o futuro esteja só lá adiante. Neste sentido, me sinto contemplado por Freud, que nos ensina que o inconsciente é atemporal, ou seja, que nós ainda somos tudo o que vivemos, que experienciamos o passado com a mesma intensidade que vivemos o presente.
Todos os cômodos da casa estão ali, à nossa espera.
Quando nos lembramos de algo, vamos até um determinado aposento para vermos o que tem dentro. Muitas vezes, não tínhamos a lembrança de que em uma das gavetas de um móvel daquele quarto havia um documento esquecido, uma foto que imaginávamos ter jogado fora ou uma peça de roupa que julgávamos ter perdido. Não é incomum que, ao lembrarmos de algo, também venham junto alguns fragmentos de memória que não tínhamos ideia que ainda estavam vivos.
Neste sentido, creio que não faz sentido o imperativo contemporâneo de que temos que “superar” os nossos traumas. Isso também seria imaginar a memória como uma estrada reta, como se um evento traumático do começo da viagem deixasse de existir por nos distanciarmos dele. Contrariamente ao que se costuma dizer, o tempo não cura tudo não, pelo contrário: o cheiro de mofo de um aposento fechado pode se tornar excessivamente nauseante.
Assim como em toda reforma, por vezes é necessário que nos acomodemos em uma parte menos agradável da casa, ou que tenhamos que aguentar um pouco do barulho das obras. Sim, essa é uma analogia para a vida: há momentos em que, por um motivo ou outro, nos vemos obrigados a circular por quartos e salas de que não gostamos, onde não nos sentimos tão acolhidos, mas que ainda assim fazem parte de quem somos.
Por vezes, temos que entrar nas partes mal-assombradas de nossa memória.
Quando algum familiar morre, por exemplo, precisamos dar atenção aos seus restos que guardamos em nossas gavetas, nem que seja para acomodá-los de forma a que ocupem menos espaço. Algumas vezes são situações banais que nos fazem circular pelo aposentos empoeirados: um conflito no trabalho traz algo das discussões familiares na infância, uma desilusão amorosa faz com que nos lembremos de alguém que esqueceu de nos buscar na escola, uma insegurança com a própria imagem faz com que tenhamos que lidar com o adolescente esquisito que fomos.
Se não superamos um trauma, então o que podemos fazer? Ora, talvez uma alternativa seja abrimos as janelas e deixarmos um pouco do cheiro de mofo sair. Passarmos uma vassoura no chão e um pano nas superfícies empoeiradas também pode fazer bem. Não que isso exorcize os fantasmas, mas pelo menos estaremos num ambiente mais confortável para travarmos um diálogo com as nossas assombrações.
Enfim, em algum momento de nossas vidas acaba sendo uma boa ideia circularmos um pouco pelas regiões evitadas da casa, ainda que isso não seja fácil. É melhor termos a coragem de visitar as partes assombradas de nossa memória do que termos que lidar com alguns fantasmas que aparecem onde menos esperávamos. E se tem algo que a psicanálise nos ensina é que os fantasmas, assim como a verdade, sempre retornam.
Foto da Capa: Czapp Árpád / Pexels