Como viagem de repórter significa deslocamento de veículo, diária para a equipe, etc., as redações costumavam (costumavam porque sei que hoje em dia o garrote apertou e se viaja muito menos do que em meus anos de repórter, lamento por vocês, nova geração) fazer caber na mesma jornada mais de uma “pauta” a ser desenvolvida. Assim, se por um lado fomos documentar essa tensa história criminal agravada pela confusão completa da polícia – que prendeu uns 40 suspeitos e no fim só conseguiu identificar um agressor em um único crime, um jovem com problemas mentais, quando as evidências apontavam para mais de um perpetrador –, por outro nos encomendaram também um texto “atmosférico”, digamos, descrevendo uma noite de jogos num cassino em Rivera, onde esse tipo de estabelecimento era legalizado.
Um pouco de contexto: era um momento em que a liberação ou não de cassinos voltava a ser discutida devido à proliferação em toda parte das máquinas caça-níqueis instaladas em bares, botecos e até restaurantes. Em consequência, começaram a ser também alvos de operações da Polícia Federal. Essa foi uma discussão que, entre idas e vindas, ressurgiu ao longo dos anos seguintes até que, em 2004, as caça-níqueis foram proibidas, juntamente com os bingos. Os cassinos, naquela época, já contavam com meio século de proibição.
Decadência
Então fomos lá, eu e o fotógrafo André Feltes, para registrar “uma noite no cassino”. Embora eu tenha crescido numa cidade em que, com dinheiro, uma viagem além da fronteira era razoavelmente fácil não só para ir a um cassino como para outras paradas bem mais complexas (um de meus colegas de então 2º Grau costumava, todo carnaval, viajar com um parente mais velho para o Uruguai e lotar o porta-malas do carro de lança-perfume, por exemplo), bem, a minha família não tinha dinheiro, então eu nunca havia ido a um cassino. Talvez porque as imagens feéricas de Cassino, o filmaço de Scorsese, estivessem ainda muito frescas na minha jovem memória, acho que eu esperava encontrar algo parecido com o que havia visto na tela: um misto de glamour fascinante e de decadência perigosa. Sendo assim, tenho a dizer que a única dessas coisas que encontrei na minha visita ao cassino de Rivera em alguma noite qualquer de março de 1998 foi a decadência, mas não aquela perigosa dos filmes, e sim aquele tipo de estagnação empoeirada de coisas há muito tempo guardadas e sem uso.
O lugar era coberto de um carpete vermelho que talvez tivesse sido chique na inauguração, mas estava desgastado. As luzes não eram nem um pouco feéricas, estavam mais para desmaiadas. Uma delas, em cima de uma mesa de cartas, piscava de modo intermitente. Se alguém estivesse jogando naquele ponto, provavelmente teria uma violenta dor de cabeça. Talvez por ser noite de um dia útil, havia poucos frequentadores, a maioria uns jogadores inveterados que pareciam saídos de algum romance menor do realismo europeu e que não quiseram, sabiamente, dar entrevista (e um deles, que falou comigo, claramente não falou nada que eu pudesse reproduzir com a consciência tranquila, porque ele desabafou ali mesmo seus problemas com o vício de jogo que havia destruído seu casamento feito ele voltar a morar com a mãe em uma idade já bastante avançada – avançada pra mim, que tinha 23, mas percebo agora que ele devia ser mais novo do que sou hoje).
Resumindo: não tinha matéria. Algo que o próprio editor concordou comigo ao ver as fotos (André é um grande fotógrafo, mas não fazia milagre, e a decadência do lugar era perceptível pelas imagens). Se eu me achasse algum expoente do jornalismo literário, talvez tivesse feito alguma crônica super detalhista da noite em questão, mas isso teria de ser complementada com uma apuração monstra que teria de ser feita em mais dias no Uruguai (inviável, pelos motivos de diária e despesa que eu já mencionei) ou em longas chamadas telefônicas internacionais – e tanto eu quanto o editor chegamos à conclusão de que não era para tanto.
Não era pra tanto
Aliás, “não era pra tanto” foi uma frase que passei desde então a associar aos cassinos de modo geral. Considerando o tempo que já faz que esse bagulho é proibido no Brasil, foi para mim surpreendente conhecer um exemplar real e ver que não parecia haver mais nenhuma motivação lógica para que essa proibição permaneça. Como ainda não parece.
Eu não sou advogado, tudo o que falarei aqui vem da impressão de um leigo que trabalha profissionalmente com palavras e conceitos, mas me parece um tanto capcioso que, tecnicamente, o Decreto-Lei nº 9.215 de 30 de abril de 1946, publicado ainda na época do governo Dutra, não proíba apenas cassinos, proíbe a prática e a exploração de jogos de azar, ponto. É um decreto que já de cara ganha minha antipatia leiga porque sua fundamentação se baseia, e aqui cito textualmente, na tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro (dando muita força para a lenda que corre desde sempre de que os cassinos foram na verdade proibidos porque a esposa do Dutra, uma dessas carolas estereotípicas, o convenceu, não sei se é verdade, e provavelmente não é, sigo apenas que se essa é a fundamentação, é compreensível a origem do boato).
Outra questão que desperta a perplexidade da minha mente acadêmica (mas não do Direito, repito) é que esse decreto, na prática, não define o que considera “jogos de azar”, não há uma conceituação teórica ou prática. Talvez porque ele na verdade não “proíbe” diretamente os jogos, mas restaura a validade de um artigo de uma lei anterior, a Lei das Contravenções Penais, de 3 de outubro de 1941 (uma lei tão antiga, veja bem, que um dos parágrafos originais do artigo em questão, hoje inválido por motivos óbvios, estabelecia como pena para a transgressão uma multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, redação que foi atualizada em 2015 para R$ 2 mil a R$ 200 mil)
Como era de se esperar, então, é nesse dispositivo, o artigo 50 da Lei de Contravenções Penais, decreto-lei nº 3.688/1941, que está de fato conceituado o que a lei entende por (e proíbe como) “jogo de azar”: “a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; / b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; / c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva”.
O texto da lei fala ainda que esse tipo de jogo e sua exploração será proibida em “lugar público ou acessível ao público”, o que a legislação conceitua como:
“a) a casa particular em que se realizam jogos de azar, quando deles habitualmente participam pessoas que não sejam da família de quem a ocupa; / b) o hotel ou casa de habitação coletiva, a cujos hóspedes e moradores se proporciona jogo de azar; / c) a sede ou dependência de sociedade ou associação, em que se realiza jogo de azar; / d) o estabelecimento destinado à exploração de jogo de azar, ainda que se dissimule esse destino”.
E por que estou tão fixado nessas definições? Porque já faz anos que esse tópico específico é um exemplo de cartela da dupla personalidade social brasileira. Já na época da publicação da lei está expresso que inclui na ilegalidade quem promover ou vender bilhetes de loteria não autorizada. Porque, claro, o Estado, por meio da Caixa Federal, por exemplo, promove seus próprios “jogos de azar”, as loterias, lotos, quinas, senas, mega-senas, sei lá o que está na moda hoje em dia, eu mesmo só sou de apostar quando alguma dessas coisas acumula até um valor absurdo. Talvez exista em algum lugar um conceito que especifique por que a loteria federal, um sorteio “em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte”, é autorizada e um cassino não. Imagino que seja por questões de impostos, mas nada impediria o governo de cobrar impostos de um cassino, por exemplo.
A lei e o mundo
Naquela época da minha viagem, fins dos anos 1990, não apenas havia caça-níqueis sendo instalados em toda birosca possível como já eram onipresentes e populares as chamadas “raspadinhas”, um jogo que, pelo puro conceito das palavras, também se enquadra nessa definição de “jogo de azar” – tanto que, depois de anos em discussão, também essa modalidade de jogo foi proibida, em 2015, e sua exploração exclusiva foi assumida pelo Estado com a criação da Lotex pelo Temer em 2018.
Um advogado de nome Gastão Ponsi apresenta, neste texto do site ConJur, outro elemento para exemplificar a forma dúbia como a sociedade e a legislação brasileira lidam de modo um tanto esquizóide com o que não pode na letra da lei mas acontece igual no mundo concreto: cassinos seguem proibidos, e os jogos nele praticados continuam sendo enquadrados como “contravenção penal”, mas “o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (…) mantém o código Cnae 9200-3/99 para a atividade econômica de exploração de jogos de azar e apostas.” Trocando em miúdos: tá proibido, mas tem tanta gente fazendo que é estatisticamente relevante o instituto responsável mapear o fenômeno.
Eu estou longe de ser o cara do Estado Mínimo, pelo contrário, só tento imaginar se há alguma motivação real além de tradicional hipocrisia social brasileira para termos cassinos proibidos, por exemplo, em um país em que hoje, chegando finalmente ao cenário contemporâneo, estamos no paraíso dessas suspeitíssimas bets online não só em plena atividade como financiando, por meio da propaganda, boa parte do promíscuo e um tanto venal jornalismo esportivo praticado no país.
Ontem e hoje
Embora aquela mesma lei que invalida os cassinos também proíba “as apostas sobre qualquer outra competição esportiva” e ainda esteja valendo, foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente no ano passado a lei que estabelece as diretrizes para operação e veiculação de anúncios das grandes empresas internacionais de apostas no mercado brasileiro. Com isso, o governo decidiu garantir seu quinhão de um mercado em que rola muita grana em serviços online em que se aposta em qualquer coisa envolvendo qualquer competição. E não no boteco clandestino em que um guri de chinelo e camiseta surrada aponta o jogo do bicho dos frequentadores, mas às abertas, com nomes grandes do futebol nacional fazendo propaganda e endossando a parada, como Ronaldo Nazário, Rivaldo, Rivelino, entre outros.
Numa época em que o jornalismo esportivo era realmente jornalismo, e não só relatório de jogo e transmissão de mesa redonda, a revista Placar revelou, em uma reportagem histórica publicada em 1982, a chamada “máfia dos 13 pontos”, um esquema de manipulação de resultados que visava garantir que determinados resultados fossem obtidos em favor de um grupo de apostadores da Loteria Esportiva, o principal jogo de azar “oficial” da época. A reportagem rendeu um prêmio Esso ao jornalista Sérgio Martins e uma porrada de processos contra a revista, já que, ao fim do inquérito policial surgido a partir da publicação, ninguém foi preso e a conclusão policial foi de que não havia uma “máfia organizada”, mas “grupos esparsos”.
Adoraria pensar que é com base nesse retrospecto tão pouco alvissareiro que o jornalismo esportivo contemporâneo se encolheu em investigar esse setor específico quando as “bets” começaram a se proliferar, mas na prática imagino que a resposta seja ainda pior: não se fez a matéria nem se foi atrás de nenhum tipo de fio a ser puxado nesse caso porque as atuais equipes jornalísticas do setor esportivo sequer pensaram nisso, tão naturalizada está a presença das firmas de apostas nesse cenário.
Tanto é que a regulamentação realizada ano passado foi feita não após uma matéria bombástica como a da Placar nos anos 1980, mas depois de uma operação comandada pelo Ministério Público de Goiás ter citado ou investigado vários jogos e jogadores suspeitos de haver cedido ou participado de tentativas de manipulação de resultados. Em circunstâncias normais, que eu me lembre, esse tipo de operação teria provocado a corrida dos jornalistas em busca de mais informações sobre os inquéritos, sobre as investigações, novas denúncias, etc. Que eu me lembre, a maior parte da imprensa esportiva do período, já totalmente tomada de anúncios de sites de apostas, se apressava e defender a continuidade dos campeonatos em que foram flagradas possíveis manipulações (esse mesmo campeonato que nunca para, seja porque havia uma “máfia do Apito” vendendo resultado de jogos, como em 2005; seja porque um time caiu de avião, em 2016; seja porque o Estado de dois dos seus principais clubes está debaixo d’água, como em 2024). Não houve aprofundamento, não houve questionamento incisivo.
E com tudo isso, ainda são proibidos os cassinos – e mais recentemente os bingos. Não entendo muito bem as duas coisas.
Eu particularmente não jogo nada além de videogame e não sou do tipo que gosta de viajar, então a existência ou não de cassinos em hotéis ou de bingos em cinemas abandonados não me afeta em nada (embora eu deva confessar que, entre duas alternativas ruins, a de um cinema abandonado virar bingo ou igreja evangélica, ainda fico com a primeira), mas considero essa proibição já quase centenária uma daquelas teimosias inexplicáveis: em um país em que o jogo de azar corre solto com propaganda e atuação regulamentada, esse tópico específico segue valendo. Claro que o próprio cinema que eu citei no início sempre foi pródigo em apontar como os cassinos eram terrenos férteis para a exploração do crime organizado. Mas qual atividade humana não é se deixada a bangu? Haveria ainda uma ideia moralista agregada à ideia do Cassino como um templo hedonista em que incautos perdem suas economias? Então o que justifica os hipódromos, as bets e quetais, onde o dano pode ser o mesmo?
Eu quero a legalização dos cassinos? Na verdade, pouco me importa, eu só queria mesmo era entender o quanto essa dupla personalidade legal e social se manifesta nesse tópico em específico.