Não sei bem por que trago esse assunto pra vocês. Talvez porque eu ande angustiado por ver uma coisa tão linda e importante como a arquitetura, enquanto realidade concreta, entrar, cada vez mais, para dentro das nossas telas de celulares e correlatos. São elas, as imagens das telas, que se tornaram o meio preponderante de desfrutá-la e, talvez até pior, passaram a ser referência para o que se vai produzir. Um círculo vicioso que me parece assustador. Vejo isso todo dia no ensino, na crítica, na divulgação e na apreciação do usuário dessa arte tão particular.
A fotografia trouxe repercussões inusitadas para o mundo da arquitetura. Para se conhecer um edifício, até algumas gerações atrás, era obrigatório ir até ele, percorrê-lo, se possível, em horários diferentes. A arquitetura muda com a variação da luz e, à noite, então, pode se transformar em outra coisa. Outra opção era ouvir relatos de observadores atentos que, assim como bons escritores, sabiam descrever sensações, agradáveis ou não, de percorrer um edifício. Estou falando de sensações e não de transcrição visual de um objeto.
Acho maravilhoso poder ver através da fotografia e do cinema lugares que não chegarei a conhecer pessoalmente. E, dos que já conheci, a fotografia é uma ótima maneira de acessar a memória. Além disso, há fotógrafos excepcionais que transmitem, com seu trabalho, algo do espírito do lugar. Mas, mesmo assim, não dá para substituir a experiência in loco por uma fotografia.
Em uma imagem, o edifício e suas superfícies retratadas são apenas a parte visual de um conjunto de estímulos que a arquitetura aciona sobre quase todos os nossos sentidos. Ela tem cheiros, texturas, sons, luzes, perspectivas, praticidade ou não, conforto ou não, além de proporcionar algo indizível como bem ou mal-estar, aconchego… eu poderia seguir com uma lista de adjetivos que raramente conseguem traduzir com precisão o que sentimos com a arquitetura.
Uma foto de arquitetura não é arquitetura, assim como uma foto de um prato gourmet não diz nada além da qualidade visual do prato. Ceci n’est pas une pipe, escreveu René Magritte sobre a pintura que fez de um cachimbo (pipe) para dizer justamente isso: uma imagem não substitui o objeto.
Na música, ao ler uma partitura, pra quem sabe e tem experiência, é possível reconstituir cerebralmente, com alguma precisão, a composição. No caso da arquitetura, o projeto faz o mesmo papel. Os desenhos que instruíram a sua construção permitem o mesmo efeito. É possível, para quem tem visão espacial e imaginação, formar uma ideia do resultado do projeto. É o que faziam os professores em uma escola de arquitetura antes da invasão das imagens renderizadas. Hoje, já não é preciso exercitar a imaginação, softwares fazem isso por nós, assim como os sintetizadores musicais. Só que, diferentemente do que sai de um sintetizador – música – no caso de um projeto saem imagens que substituem o exercício trabalhoso da formulação cerebral, a imaginação.
Além disso, posso dizer, por experiência própria, que a execução de uma obra sempre traz surpresas. Pode ser aquele raio de luz que invade o espaço em determinada época do ano e dá protagonismo inesperado para uma parede ou detalhe interno. Pode ser uma corrente de ar que traz odores que não interessam, pode ser sensações espaciais inusitadas que a escala real pode proporcionar. E tem os erros no desenrolar da obra que submetem a rigidez do projeto a novos caminhos e, com boa sorte e habilidade do arquiteto, à sua evolução, como tão bem nos diz o escritor Mia Couto sobre a importância do erro para a biologia (na evolução das espécies) e, portanto, para a humanidade.
A imagem digital elaborada a partir do projeto, o render, não tem erro (em relação ao próprio projeto) e, por isso, curiosamente, hoje em dia, muitos escritórios divulgam seus trabalhos não através de fotografias da obra pronta, mas de imagens digitais. A perfeição platônica, que só existe no mundo das ideias, substitui a experiência humana, concreta, real.
Toda arte tem como pressuposto a própria arte, isto é, a criação não brota espontaneamente, é preciso conhecer o que já foi feito na arte em que escolhemos atuar. A que é feita sem conhecimento dos seus próprios pressupostos, não por outra razão, é chamada de naif, um termo que vem do francês e quer dizer ingênua.
Quando é a fotografia e não as próprias obras que alimentam esse ciclo, algo está se perdendo pelo caminho. Passamos a falar de outra coisa que não de arquitetura. O usuário, por sua vez, tende também a fazer sua apreciação privilegiando o olhar, montando imagens mentais do lugar para poder comparar e avaliar a obra com o repertório de suas vivências não de arquiteturas, mas de imagens de arquiteturas vistas nas redes sociais e outros meios, sempre bi-dimensionais, planas.
Todos os textos de Flávio Kiefer estão AQUI.
Foto da Capa: reprodução do quadro A Traição das Imagens, de René Magritte.