CENA 1:
Um peixe fora d’água aprende mais sobre as próprias guelras se parar de temer o oxigênio. Eu amo questionar as expressões populares como essa: peixe fora d’àgua. Ela me veio à mente nesse último final de semana, quando tive a oportunidade de ser o peixe fora da minha água. Estava em meio a produtores de vinho. Eu, que sou uma sommelier de supermercado baseada em rótulos interessantes, um tipo de uva que mais ou menos sei que gosto e um preço acessível, me vi em meio a um dialeto absolutamente singular e novo. Eu sempre gostei de ver pessoas fazendo e falando sobre o que amam. Acho bonito o entusiasmo, a identificação entre pares que encontram paixão em uma prática ou conhecimento comum. Essa tendência de agregarmo-nos aos iguais, àqueles que partilham de interesses comuns, é praticamente inevitável e natural. Mas, vez por outra, nadar em águas novas ou até ficar exposta ao oxigênio pode ser interessante. Não vou virar uma expert em vinhos, mas aproximar-me de um universo absolutamente enorme do qual eu não tenho familiaridade alguma me mostrou tudo que não sei e como o universo é vasto para quem tem o privilégio do acesso, mas, acima de tudo, curiosidade. Muita gente tem possibilidade de saber sobre muitas coisas, mas não tem curiosidade alguma. O aquário conhecido é mais confortável do que um oceano inteiro.
CENA 2:
A memória é uma ilha de edição. Será que recordamos o que precisamos ou só o que somos capazes de tolerar de tudo que de nós e por nós foi feito? Na última semana, assisti ao vídeo de uma entrevista da atriz americana Kathy Bates, premiada por sua brilhante interpretação no filme “Louca obsessão”, de 1990. Nessa, ela falava sobre sua conturbada relação com a mãe, mencionando que ela considerava ganhar um Oscar motivo para tanta comemoração e que, em função disto, Kathy não teria agradecido à mãe em seu discurso pela conquista. O entrevistador então a contrapõe e afirma que ela agradeceu, mostrando a ela o vídeo. Kathy leva um susto e agradece muito ao entrevistador, pois tinha convicção (e consequente culpa) de não ter agradecido à mãe. Fiquei me perguntando sobre as narrativas que criamos sobre nossa própria história, as narrativas nas quais somos inseridos, as histórias que nos contam sobre nós que, depois de um tempo, já não sabemos mais se de fato as vivemos ou se foram sobre nós projetadas. Quem comanda essa ilha? Seremos náufragos de memórias inventadas? Como se sai dessa ilha?
CENA 3:
O saber é cada vez menos para quem quer e muito mais para quem pode. A informação é cada vez menos acessível. Sou leitora do incrível Julian Fuks e fazia tempo que não acessava seus textos em uma plataforma online. Seu último texto, sobre a FLIP (Festa literária de Paraty), parecia muito interessante pelo início postado em seu Instagram. A continuação, conforme orienta a postagem, é pelo famigerado “link na bio”. Sei muito bem que viver de informação, de literatura, é uma empreitada complexa em nosso país tão pouco incentivador da cultura, mas ao clicar no link, o texto parece por alguns segundos e em seguida é bloqueado, pois para ter acesso completo é preciso pagar, é preciso ser associada à tal plataforma via mensalidade. Esse é um tema delicado, pois informação não é de graça. Mas não deveria ser desgraça. Senti um pouco de raiva desse impedimento; pensei que eu até poderia pagar por mais essa mensalidade que, de 99 em 99 centavos, vai se somando a tantas outras. Mas e quem não pode e gostaria de ter acesso? Estamos cada vez mais limitando a informação a quem já pode usufruir dela?
Essas são cenas aleatórias, são as coisas que me acontecem, pensamentos que me invadem, reflexões que me atravessam. Aparentemente elas não têm relação direta, mas não as acho tão destoantes assim. Estar presente onde se pode, saber das próprias águas e da própria capacidade respiratória. Saber que a própria história está sempre sujeita a revisões, a atravessamentos da memória, a truques do esquecimento. Saber que a informação precisa de busca, precisa de investimento. Conhecimento não deveria ser apenas produto de lucro. Conhecer das coisas, conhecer de si, conhecer a história do outro.
Viver é uma loucura e uma coisa linda, não é?
Foto da Capa:
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