Parecia se estar assistindo a “crônica de uma morte anunciada” (da obra homônima de Gabriel Garcia Marquez), em que o personagem Santiago Nasar sabe desde o início que vai morrer, mas persevera. Foi assim com o esquartejamento funcional promovido pelo Centrão sob o comando do presidente da Câmara, Arthur Lira, que ditava clara uma mensagem ao presidente Lula: Esta terra tem dono, poderia dizer parafraseando um mito guarani, Sepé Tiarajú, resistindo à invasão espanhola nas missões guaraníticas.
De quebra, dá o recado: na semana em que assegurara vitória arrasadora ao governo no arcabouço fiscal, na sequência marca de morte o futuro Governo III de Lula. As derrotas impostas chegaram, em série, dirigidas especialmente às ministras do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede), e dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara (Psol), de refilão pegando na Articulação Política do Governo, tida como pouco hábil. Pior é que cheira misoginia atingir duas ministras mulheres, uma negra e outra indígena, que têm seus ministérios esvaziados, na estrutura e atribuições.
A vigorar a reforma planejada, vingada no primeiro plano, o governo muda de configuração. Parece que a direita, que perdera a eleição, sequer deixou o Planalto. Que Lula vira um executivo com poder limitado. Na sexta-feira após encaminhadas as reformas da Esplanada, Lula tentou conter danos. E conseguiu. Não houve a terceira (e já esperada) defecção de Marina (hoje um nome de projeção internacional na defesa do meio ambiente e cuja saída acarretaria grave abalo à imagem pública do País). Mas o Governo sequer fechou seu primeiro semestre e muita água vai rolar neste vasto canal que sempre separou a direita e a esquerda, no Brasil e no Mundo.
O Congresso impôs, em um mesmo dia, uma série de derrotas ao Governo mesmo após a articulação política do governo ceder à pressão do Centrão com aval de Lula. O desgaste da ministra Marina e da pauta ambiental, que já vinha sendo alvo de embates dentro do governo com a disputa entre Ibama e Petrobras devido ao plano de exploração de petróleo na foz do rio Amazonas, foi agravado diante do avanço da Medida Provisória de reorganização da Esplanada dos Ministérios. Ela, aprovada por deputados e senadores, incluiu mudanças na estrutura do governo que fortalecem o Centrão e retiram poder de Marina e Guajajara.
Marina sofreu ainda outras derrotas no plenário da Câmara. Deputados votaram uma MP, editada no final do governo anterior, e retomaram trechos que afrouxam as regras de proteção da Mata Atlântica, que haviam sido retirados pelo Senado. Há esperança de veto por Lula. A Câmara ainda aprovou um pedido de urgência para acelerar a tramitação do Marco Temporal, que limita a demarcação de terras indígenas aos territórios ocupados até a promulgação da Constituição de 1988.A medida afeta frontalmente a ação da ministra Sonia Guajajara.
A Medida Provisória de Reorganização da Esplanada dos Ministérios é uma mão de ferro no Executivo. É de autoria do líder do MDB na Câmara, Isnaldo Bulhões Junior, que desidratou a política ambiental do governo. Competências de órgãos que atualmente estão com o Meio Ambiente e os Povos Indígenas serão transferidas para outras pastas. Outro esvaziamento evidente.
A orientação do governo era para que parlamentares da base votassem a favor do texto, uma vez que o Executivo tem pressa, já que a MP perderá sua validade no dia 1º de junho. A medida ainda precisa ser votada nos plenários da Câmara e do Senado. A MP original foi editada por Lula logo no início do governo, com a nova organização da Esplanada dos Ministérios. Foi ela que ampliou, por exemplo, o número de ministérios de 23 para os atuais 37.
Mas o texto aprovado pelos deputados na comissão enfraqueceu Marina e gerou reação da própria ministra. A gestão da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), hoje com o Meio Ambiente, foi transferida para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. A pasta é comandada por Waldez Góes, do PDT, mas uma indicação de parlamentares da União Brasil. Ainda passou o CAR (Cadastro Ambiental Rural), instrumento para controlar terras privadas e conflitos em áreas de preservação, do Ministério de Marina para o da Gestão e Inovação em Serviços Públicos. O órgão é considerado importante por gerenciar a fiscalização de crimes ambientais em propriedades rurais, como grilagem e desmatamento.
Aliados de Marina preferem colocar as derrotas em série na Câmara dos últimos dias na conta da falta de articulação política do governo, e não em uma espécie de mudança no compromisso ambiental do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Segundo um marinista, uma prova dessas deficiências é o fato de que a bancada de defesa dos indígenas na Câmara ter conseguido impedir a votação do marco temporal durante o governo Jair Bolsonaro (PL), um inimigo da causa, mas não no de Lula, um aliado. Vem daí a crença de que Lula vai ajudar Marina a tentar reverter as medidas da agenda antiambiental em plenário e eventualmente vetar projetos contrários que sejam aprovados. Caso isso não ocorra, no entanto, aí sim a relação com o presidente poderia ficar seriamente abalada.
O jogo está só começando
Na reunião com os quatro ministros, incluindo as das pastas mais atingidas, Marina e Sonia, Lula prometeu buscar alternativas para reverter o desmonte realizado e admitiu estar sem forças no Congresso. Reiterou que sua gestão mantém o compromisso de preservar o meio ambiente e a defesa dos indígenas.
Foi com ironia e uma ponta de deboche que Lula disse a aliados mais próximos não se preocupar em demasia com o avanço do Centrão. E fez isso na véspera de convocar um churrasco entre ministros, assessores e parlamentares da base para mostrar que ele, agora, voltou a ser o ser principal articulador político, papel que vinha sendo reclamado. Lula ouviu as queixas e quer evitar o aprofundamento da crise gerada nessa semana. As medidas de maiores efeitos sobre o meio ambientes serão vetadas e ele sabe que a Câmara derrubará esses vetos. Mas conta também que o Senado mantenha os vetos e assim alinha-se ao Governo. Vai mostrar que ainda tem a força. Que sofreu, mas o jogo, como ele repetiu, “apenas começou”.
Verdade. Ainda faltam 42 dos 48 meses deste governo.
Drops
- A gestão Lula liberou, em 2023, R$ 2,9 bilhões em verbas até terça-feira (23) — quase 90% somente no mês de maio. As emendas existem para que os congressistas cumpram os compromissos políticos assumidos em seus mandatos, geralmente em seus redutos políticos. O Nexo explicou o que são esses instrumentos e como eles são usados em negociações políticas.
- Durante as negociações sobre a MP, o governo Lula agiu para tentar evitar derrotas em áreas prioritárias e acabou dando aval para a desidratação do ministério de Marina. A articulação política do governo cedeu à pressão do Centrão, principalmente dos ruralistas, para blindar a Casa Civil, responsável pela execução dos projetos mais importantes para o presidente, como o PPI (Programa de Parceria de Investimentos). A avaliação no Planalto é que as concessões previstas no relatório de Isnaldo seriam inevitáveis com a atual correlação de forças no Congresso. A ala política tinha o diagnóstico de que seria muito difícil enfrentar a articulação da bancada ruralista na área agrária e ambiental.
- Diante da evidente fragilidade em sua base de apoio na Câmara, o presidente Lula deu início a um movimento para aplacar a insatisfação das ministras Marina Silva e Sonia Guajajara e evitar a saída dos cargos. Ao mesmo tempo, decidiu não enfrentar o Congresso Nacional. Tanto a folgada vitória na aprovação do arcabouço fiscal como as derrotas em pautas no saneamento e na questão indígena mostraram que a maior força na Câmara está nas mãos do presidente da Casa, deputado Arthur Lira e do Centrão, que ele comanda.
Foto da Capa: Ministra Marina Silva – Lula Marques / Agência Brasil