O Cerrado é um bioma marcado para morrer, caminhando a passos largos para a sua extinção, após perder mais da metade de sua cobertura nativa original. Apesar de ser um ecossistema vital para o Brasil, que, apesar de sua rica biodiversidade e importância hídrica, tem sido historicamente negligenciado.
Se perguntarmos qual é o símbolo da natureza brasileira, poucas pessoas lembrarão do Cerrado e provavelmente falarão da Amazônia. Se pensarmos nas ameaças do desmatamento e das queimadas, a resposta também será a Floresta Amazônica. Afinal, são tantos benefícios e ameaças quando se fala da floresta que ela ofusca os demais biomas que formam o nosso território, como a Caatinga, a Mata Atlântica, o Pantanal e o Pampa.
A imensidão da Amazônia também nos faz, muitas vezes, esquecer do tamanho e da importância do Cerrado e das ameaças que rondam esse bioma, que detém uma rica biodiversidade e é fundamental para que a água chegue até as torneiras das casas em todo o Brasil.
Afinal, o Cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul, está presente nos 12 Estados e nas 5 Regiões brasileiras, e ocupa uma área de praticamente 2 milhões de km2, o que corresponde a cerca de 23% do território nacional.
Porém, como lembra o poeta Nicolas Behr, quando Brasília foi construída no meio do bioma, enormes áreas de cerrado foram desmatadas, muitas vezes sem necessidade. É que o cerrado, naqueles tempos, era (e para muitos ainda é) o patinho feio da vegetação brasileira, um bioma de segunda classe: aquelas árvores tortas, “feias”, sofridas…
Defendendo a beleza dessas árvores, diz o poeta:
Nem tudo o que é torto é errado. Veja as pernas do Garrincha e as árvores do cerrado.
Todo brasiliense que se preza já escutou alguma vez na vida este poema de Nicolas Behr. Quem anda por Brasília acostuma-se a ver as árvores com galhos finos, troncos retorcidos, tortos como as pernas de Garrincha e raízes profundas, para buscar água nas profundezas abaixo do solo ressacado, que enche tudo por perto de uma poeira vermelha.
O Cerrado engana, mesmo parecendo muitas vezes como um terreno inóspito, ele é rico em vida, concentrando cerca de um terço da biodiversidade brasileira e 5% da fauna e flora mundiais. O bioma está entre os top five em número de diferentes espécies de aves e nos top ten de anfíbios. Essa diversidade se deve aos seus limites, fazendo fronteira e tendo zonas de transição com todos os outros biomas brasileiros, com exceção do Pampa.
Ao se falar na biodiversidade do Cerrado, salta aos olhos a enorme quantidade de espécies endêmicas, assim chamadas aquelas espécies de animais ou vegetais que ocorrem exclusivamente em uma determinada área ou região geográfica.
O Cerrado também é rico nas suas diferentes paisagens ou, como chamam os biólogos, em suas “fitofisionomias”, que são os tipos de vegetação presentes em um determinado bioma, com diferentes formações, juntando campos, savanas e florestas.
CAMPOS | SAVANA | FLORESTA |
Campo Limpo | Vereda | Cerradão |
Campo Sujo | Palmeiral | Mata Seca |
Campo Rupestre | Parque de Cerrado | Mata de Galeria |
Cerrado em sentido restrito | Mata Ciliar |
Tudo isso desmente o que Nicolas Behr ouvia em sua infância, que o cerrado não tinha vida. Como ele costuma dizer, “o cerrado é a vegetação de savana mais rica do mundo em termos de biodiversidade.” Porém, todo esse cenário rico em vida está sendo destruído, podendo causar a perda de um patrimônio natural e das comunidades tradicionais que há muito vivem nesse habitat, como os povos indígenas, ribeirinhos, babaçueiras e as comunidades quilombolas.
A combinação da grande biodiversidade, em especial das espécies endêmicas, e do perigo da perda do habitat natural, faz com que esse bioma seja considerado um hotspot de biodiversidade, ou seja, uma área prioritária para a proteção natural, inclusive com o estabelecimento de áreas protegidas e unidades de conservação.
A principal ameaça ao Cerrado é o desmatamento por pressão da agropecuária, que responde por mais de 97% de toda a perda de vegetação nativa no Brasil nos últimos cinco anos.
Some-se a isso o manejo inadequado do solo na região, que tem causado perdas significativas desse recurso, com estimativas do WWF indicando que, para cada quilo de grãos produzido, perde-se de 6 a 10 quilos de solo por erosão. O Brasil desperdiça cerca de 1 bilhão de toneladas de solo fértil anualmente, o que faz com que sejam mais necessários produtos, pois plantas mal nutridas são mais vulneráveis a pragas e doenças. A erosão dos solos contribui para o assoreamento dos cursos d’água e o uso indiscriminado de fertilizantes e pesticidas causa a deterioração da qualidade da água.
Além disso, a agricultura na região consome e desperdiça grandes quantidades de água, resultando em conflitos pelo uso da água entre agricultores e áreas urbanas, que passam a enfrentar constantes crises de abastecimento.
A água é um recurso vital do Cerrado, uma vez que a região encontra-se sobre o Aquífero Guarani, onde se encontram as nascentes das bacias do rio Amazonas, rio Tocantins, rio São Francisco, além do Paraná e do Paraguai. Suas águas chegam até a bacia do Prata, extrapolando nossas fronteiras. A maior parte da água bebida no Brasil vem de rios com as nascentes naquela área.
Porém, o maior problema ambiental vivido pelo bioma é o desmatamento. Segundo dados do Map Biomas, em 2023, o Cerrado ultrapassou a Amazônia pela primeira vez no desmatamento, registrando a maior área desmatada entre os biomas, com um total de 1.110.326 hectares e um aumento de 67,7%. Em relação ao ano anterior. Em contrapartida, a Amazônia apresentou uma redução de 62,2% na área desmatada. Juntos, esses biomas representam mais de 85% da área total desmatada no Brasil.
A condição de região mais desmatada do País traz uma série de “recordes” para o Cerrado, como o maior desmatamento em áreas protegidas, o maior alerta de desmatamento no Brasil: 6.691 hectares em Alto Parnaíba (MA) e a maior velocidade média diária de desmatamento: 944 hectares em 8 dias em Baixa Grande do Ribeiro (PI).
Por fim, mais da metade da área desmatada no Brasil em 2023 está no Cerrado, especialmente na região chamada de Matopiba, iniciais de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Para reverter esse quadro de destruição, pessoas e entidades envolvidas com o tema apontam vários caminhos, como a contenção do desmatamento, a criação de unidades de conservação, bem como a implementação daquelas já existentes e a recuperação de áreas degradadas.
Como nas demais questões ambientais, são recomendados o uso de políticas de comando e controle, com o fortalecimento dos órgãos ambientais para equipá-los com recursos e informações para fazer valer a legislação ambiental, assim como mecanismos econômicos que incentivem a preservação e recuperação das áreas e desestimule a abertura de novas áreas para as atividades agropastoris.
Além disso, há práticas já disseminadas que podem reduzir os impactos da grande agricultura, como o investimento na produtividade, a recuperação de áreas ociosas, a adoção do sistema de Plantio Direto, com a utilização de técnicas de manejo do solo que previnam sua degradação e a Integração Lavoura-Pecuária, o que diversifica a produção ao integrar agricultura e pecuária, além de aumentar a eficiência do uso dos recursos naturais, aplicando sistemas como rotação de pastagem e lavouras.
Porém, como alerta o Instituto Socioambiental, nenhuma dessas medidas será capaz de construir o caminho da sustentabilidade, entretanto, se por trás e ao redor delas não se processar uma radical mudança na visão que a população e as políticas públicas têm do Cerrado, passando a valorá-lo em função de sua preciosa biodiversidade e de sua diversidade social, e não como mera fronteira para expansão do agronegócio.
Foto da Capa: Toninho Tavares / Agência Brasil
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