
O processo civilizatório nunca foi um passeio em direção a um futuro melhor. Pelo contrário, se parece muito mais, para dizer o mínimo, com aqueles voos turbulentos que levam os passageiros ao desespero. Por outro lado, se, de qualquer forma, o olhar para trás permite que se vejam alguns avanços na história da humanidade, o transporte público de Porto Alegre me faz duvidar dessa afirmação.
Comecei a pensar nisso ao puxar conversa com a sonolenta caixa do supermercado às 9h da manhã de um dia qualquer. Acordei às 4h para poder pegar aqui às 8h, me disse ela enquanto eu a incentivava a me contar sua rotina matinal. Se fosse só a história dela, a consternação ficaria por ali mesmo. Mas não, conheço bem as mazelas do serviço de ônibus. Fui usuário deles até o limite do suportável. Claro, sou aquele privilegiado que encontrou outros meios para se locomover pela cidade. Mas, por gosto pessoal e consciência profissional, sou um defensor do transporte público. Sei que é a melhor solução para a vida nas cidades e para o meio ambiente.
Basta sair de Porto Alegre para eu voltar a ter o prazer de usufruir do transporte público. Menos no Brasil, é verdade, muito mais no exterior. Exceção feita ao metrô de São Paulo, me delicio nele. Imagino que muitos de vocês também usem os metrôs para saírem dos aeroportos quando em viagem pelo exterior e também logo comprem os vantajosos cartões que permitem usar todo tipo de transporte urbano por uma semana. Aqui no Brasil, pelo menos que eu saiba, não temos nem este nem outros benefícios.
Muito menos em Porto Alegre. A cidade desavergonhadamente dividiu seus cidadãos em duas categorias: os que se movimentam com liberdade em qualquer direção e os cativos do transporte público que pendulam entre a casa e o trabalho. E só. Como chegamos a isso?
A exclusão do sistema de bondes, que atendia indiferentemente a todas as classes sociais, foi o primeiro alerta ao qual não prestamos a devida atenção nos anos 70. A sua substituição por ônibus, feita em tempos de Brasil Grande, veio acompanhada, é claro, de promessas de modernização e progresso do sistema. Progresso, sempre ele, esse epíteto da nossa bandeira que também pede ordem (submissão) para alcançá-lo.
Para evitar que a desordem aflorasse entre influentes, o bairro Menino Deus foi contemplado com uma moderna linha de trólebus (ônibus elétricos alimentados por cabos aéreos). Mas foi só e não durou muito. O resto da cidade viu um cenário de guerra, de terra arrasada. O que se queria mesmo era queimar petróleo, aumentar o PIB pelas mãos da indústria automobilística, então recentemente inaugurada. Pavimentar avenidas, construir viadutos, vender automóveis. Enquanto isso, ferrovias e transporte fluvial eram deixados de lado. E o povo à sua sorte. Deu certo para a Casa Grande, o crescimento do PIB foi tão grande que virou milagre. Milagre brasileiro.
E para o povo? Aguardem o bolo crescer, dizia o cínico ministro da economia, depois vamos dividir. O tempo passou e ele e seus amigos sinceros ou interessados comeram-no todo. E não só, deixaram a conta para os que não o comeram.
Em Porto Alegre, o que se viu, anos a fio, foi a demolição de quarteirões inteiros para a abertura das avenidas perimetrais e outras vias que deliciaram a versão local da juventude transviada. Nas madrugadas, podiam correr, deslumbrados, com seus velozes automóveis com o escapamento aberto para que todos ouvissem os decibéis da sua pseudo transgressão. Transgressão que era tolerada pelo regime porque não o ameaçava. Repressão e controle eram reservados para os que eram chamados, com desprezo, de estudantes.
Calçadas se estreitavam, fachadas recuavam e tudo o mais que fosse possível fazer era feito para alargar vias e fazer o trânsito correr. Só que não corria. Os engarrafamentos só aumentavam de tamanho. Aumentavam porque a classe média, agora, também podia comprar seu automóvel pagando-o em consórcios de infinitas prestações.
Mas havia um novo prazer em ficar preso no trânsito em cima do viaduto, ouvindo o rádio do carro e olhando os coitados que se apinhavam dentro dos ônibus lotados e também parados: Los Angeles, não o Haiti, era aqui.
A única boa ação que consigo lembrar dessa época foi a implantação da tarifa social, solução compensatória para a vergonhosa expulsão dos habitantes da Ilhota para a longínqua Restinga. Expulsos para dar morada a uma nova classe média ascendente. Não deixaram por menos, abriram uma bonita avenida que, como maneira de amaciar consciências, foi batizada de Érico Veríssimo, um notório opositor à ditadura.
Os expulsos foram levados para um loteamento distante, em zona erma. Os que antes iam a pé para o trabalho, agora dependiam de pelo menos duas horas dentro de um ônibus sem conforto. Por outro lado, a Restinga, não sendo contígua à zona urbana, valorizou quilômetros de terras que ficavam a meio caminho, devolutas, ainda não urbanizadas. Passaram a contar com toda uma infraestrutura que não tinham, ônibus, inclusive. Velho recurso de patrocínio público aos donos de terras periféricas às cidades. Um bom negócio para seus proprietários.
A crise do petróleo de 1973 disparou o pânico, o bolo estava prestes a abatumar. A salvação, incerta, era apostar num combustível alternativo para tudo continuar como estava: o etanol. Até deu certo, mas o preço dos combustíveis e seu constante racionamento fizeram com que, inevitavelmente, o transporte público voltasse à pauta. Esse período, que não foi muito longo, trouxe esperança para os sofridos passageiros dos ônibus montados sobre carrocerias de caminhão — a indústria brasileira não fabricava ônibus. Para quê? Em 1979, a fábrica Volvo começou a produzir pela primeira vez no Brasil, em Curitiba, chassis com motor traseiro e plataforma rebaixada específicos para ônibus. Fábricas de carrocerias puderam fazer os primeiros veículos projetados para o conforto dos passageiros.
Nesse período, muitos projetos foram anunciados para botar Porto Alegre em pé de igualdade com as mais bem equipadas cidades do planeta. É desse tempo os grandes projetos de mobilidade urbana que os jornais não cansavam de exibir. Milagre mesmo seria se todos eles tivessem sido feitos… Os possíveis trajetos das linhas A e B do metrô subterrâneo, Aeromóvel até a PUC e zona sul, corredores de ônibus como os de Curitiba, VLT da Rodoviária ao Gasômetro e por aí seguia a promessa de consideração às necessidades de mobilidade de todas as classes sociais.
Pouco foi feito, alguns corredores de ônibus, as linhas transversais e… o que mais? Tivemos uma premiadíssima Carris, referência em conforto com seus ônibus agora sim fabricados como ônibus, com ar-condicionado, plataforma rebaixada e acesso universal. Também, durante seis anos, até 2017, a tarifa integrada, que permitia o uso de dois ônibus pelo mesmo preço. Misteriosamente (para os ingênuos), os benefícios foram sumindo e dos tantos projetos o poder público não fala mais.
Passado um tempo, os ônibus voltaram a ser substituídos pelos velhos caminhões mais baratos. Hoje, estupefato, leio que a prefeitura vai pagar do seu bolso 600 ônibus/caminhões com motor dianteiro e assustadores degraus de acesso para doar para as empresas. Retrocedemos 50 anos em uma penada.
Antes desse acinte, lenta, progressiva e sistematicamente, o sistema entrou em decadência. A pá de cal veio com o acesso da classe média ao Uber e, finalmente, com a pandemia. Nunca mais voltou a ser o mesmo, ainda que ruim. E a acusação, sutil, recaiu sobre os passageiros que abandonaram os ônibus, preferindo outros meios… Sem dúvida, diante do suplício, o passageiro que não tem opção de pagar um Uber, às vezes, paga.
O ônibus intermunicipal para na frente do passageiro e não abre a porta. Estranho, não? Não, é reserva de mercado. As empresas, com ajuda dos políticos, dividem os passageiros em lotes, como mercadorias. A missão, como as empresas gostam de grafar em seus murais, não é atender ao passageiro, mas aos interesses dos acionistas. Essa é só uma das infindáveis mazelas que o passageiro sofre.
Para os que acham que estou exagerando, tentem ir de ônibus a um compromisso com hora marcada ou conversem com quem depende da “condução”, como se diz por aqui. Condução que revela condição.
É triste escrever tudo isso na semana de aniversário da cidade, eu sei. Mas é mais triste saber do martírio diário que milhares de pessoas passam, e de outros tantos que não têm a opção de desfrutar de um transporte público civilizado, digno e eficiente, como gostariam. Esse direito está na Constituição, no artigo sexto, quem dá bola para isso? O desprezo pelos direitos do cidadão comum chega às raias do absurdo. Não vejo, então, nenhum motivo para comemorar essa data. Só a lamentar.
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Foto: Felipe Dalla Valle / Câmara Municipal de Porto Alegre