Em 2019, enquanto escrevia meu primeiro romance, Para onde vão as borboletas à noite, perguntei-me inúmeras vezes se teria a mesma resiliência que meus personagens. Para quem não sabe, a obra narra a trajetória de dois meninos sírios que, em meio aos horrores da guerra, enfrentam perdas devastadoras e traumas profundos que os levam a procurar um novo lar em outro país. Cinco anos se passaram e, até hoje, ainda não encontrei a resposta. Não sei se sobreviveria aos sofrimentos causados por uma guerra. Tampouco tenho certeza de que conseguiria me adaptar a uma cultura tão distinta, cercada de pessoas desconhecidas.
Esse sentimento voltou à tona ao ler Bambino a Roma, de Chico Buarque. Confesso: sou fã do Chico. Apaixonada por suas letras poéticas e por sua música, corro para a livraria sempre que ele lança um novo livro — mas este foi especial. Classificado como ficção, o autor relembra um período de sua infância em que se mudou com a família para a Itália. Essa viagem, longe de ser confortável para uma criança tão pequena, deixou marcas profundas em sua vida. Assim como os personagens do meu romance, fictício, mas inspirado na mais dura realidade, o menino Francisco precisou se adaptar aos mistérios de um novo mundo.
Em meio ao desconhecido, encontrava-se uma Itália ainda tentando se recuperar das feridas abertas pela Segunda Guerra Mundial. O país, devastado tanto em sua estrutura física quanto em seu espírito, esforçava-se para se reerguer, enfrentando a pobreza, o luto e os traumas deixados pelo conflito. Para o jovem Chico, adaptar-se a esse cenário não significava apenas aprender uma nova língua e cultura, mas também absorver o peso de um ambiente impregnado de lembranças de sofrimento e resistência.
Nos anos em que viveu em Roma, Chico Buarque frequentou uma escola americana, onde sofreu abusos por parte do professor de inglês. Em seu relato, ele não hesita em expor o nome do agressor, na esperança de que algum descendente saiba das atrocidades que ele cometia com os alunos. A denúncia de Chico revela a realidade sombria que muitos vivem em silêncio: o abuso infantil. Situações como essa deixam marcas profundas, muitas vezes invisíveis, que acompanham a vítima por toda a vida. O próprio autor confessa que só conseguiu falar desse episódio depois de se passarem setenta anos.
“Mil camadas de lembranças da infância foram se sobrepondo na minha mente, e só setenta anos mais tarde, por algum trabalho de escavação errática, me emergiu a figura satisfeita de mister Welsh com suas bochechas vermelhas.”
Ao dar nome ao seu agressor, Chico Buarque não apenas reivindica sua história, mas também rompe com a cumplicidade que o silêncio impõe, trazendo à tona a importância de falar sobre o abuso e combater essa violência que afeta tantas vidas, especialmente na infância.
Além desse evento marcante na vida do futuro artista, ele relembra como a notícia do suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, foi recebida na Itália. Embora os jornais destacassem o funeral do presidente e as rebeliões que explodiam nas capitais brasileiras, a maioria dos italianos mal sabia onde o Brasil ficava. Chico também menciona que seus pais não simpatizavam com Vargas, devido ao seu histórico como ditador, e que quase ninguém de seu círculo social nutria afeição por ele — exceto uma babá, que defendia o “Velho” com tanto fervor que chegava a ameaçar quem ousasse falar mal dele.
A obra de Chico Buarque vai além de uma simples narrativa sobre a infância e a adaptação; ela oferece uma reflexão sobre a habilidade humana de enfrentar adversidades. Ao compartilhar sua vulnerabilidade, o autor nos instiga a acolher a complexidade da experiência humana, a reconhecer nossas cicatrizes e a descobrir a força que pode surgir da fragilidade. Diferente dos personagens do meu livro, Chico não era um refugiado ao embarcar para a Itália; sua família se mudou devido ao trabalho de seu pai. No entanto, ele ainda enfrentou desafios para se sentir integrado naquela nova realidade. Através da literatura, tanto a minha quanto a de Chico Buarque, podemos explorar essas experiências, que podem não ser pessoais, mas que refletem a situação de muitas pessoas ao redor do mundo. Compreender os diversos motivos que levam alguém a deixar seu país — nem sempre por escolha — é fundamental para acolhê-las de maneira mais empática em nossa sociedade.
Foto da Capa: Divulgação
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