Vai passar! A expressão que virou mantra durante a ditadura que torturou o Brasil e, recentemente, no período da pandemia, é o título de uma canção de Chico Buarque que me representa. Criada em meados dos anos 1980, período conturbado em que, finalmente, vislumbrávamos o fim do poder cruel instaurado no país em 1964, a música fala da esperança que nos movia em um tempo cravado de injustiças, tortura e morte. É sobre este cara intrépido, corajoso, talentoso, que nunca desistiu, que o jornalista e escritor Márcio Pinheiro fala no livro “O que não tem censura nem nunca terá – Chico Buarque e a repressão artística durante a ditadura militar” (L&PM Editores).
Sou fã de Chico (Francisco Buarque de Hollanda) desde que a “A Banda” passou e venceu o Festival de Música Popular Brasileira em 1966. Eu era uma adolescente ingênua, morava em São Francisco de Paula, não entendia de política e muito menos sabia que vivíamos numa ditadura militar. Mas as músicas do jovem compositor que ganhava cada vez mais espaço no cenário da arte brasileira me arrebatavam. Aos poucos, comecei a perceber o mundo ao redor e suas artimanhas. No início do curso de Jornalismo fui indicada para um estágio no jornal Zero Hora. Seis meses depois fui contratada como redatora do setor de pesquisa. Além da produção de textos para as diversas editorias, a equipe era responsável pela manutenção e atualização do arquivo de assuntos (o Google da época!), através do recorte de jornais, revistas, seleção de material, fichário e sugestões de pauta. Em uma tarde de trabalho, me dei conta que há alguns dias eu não via um dos editores que mais solicitava textos nossos. Perguntei por ele e me disseram que estava afastado por segurança. Ponto! Aí as fichas começaram a cair e me tornei uma pessoa atenta aos rumos da política no Brasil.
Vivíamos um período de repressão absurda e a censura fechava o cerco, o que a linguagem simbólica das músicas de Chico já anunciavam.
“Dormia / A nossa pátria-mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações” – “Vai Passar”, música de Chico Buarque e Francis Hime.
Ao reencontrar sentimentos daquela época no livro de Márcio Pinheiro, me dei conta que é muito mais do que um livro sobre a perseguição sofrida durante anos por um dos compositores que enfrentou um regime que perseguiu, torturou e matou sem piedade. É um mergulho profundo que mostra a força da arte que nos acompanha, representa, liberta e revela, nas entrelinhas, um tempo histórico longo e triste. Nesta publicação, especificamente, o mergulho feito a partir das canções de Chico sublinham cada momento vivido por uma população inteira em duas décadas de ditadura. Estou encantada com a estrutura do livro, a maneira como a realidade política vai se revelando pela palavra musical e como a esperança vai renascendo em meio ao caos.
“O que este livro traz é a reconstrução, em detalhes, daqueles tempos de pesadelo, fúria e dor”. “Para quem viveu aquele temporal, é trazer a memória de volta. E, para quem não viveu, é trazer uma revelação mais que necessária, para que nunca mais torne a acontecer”. Estas são palavras de Eric Nepomuceno, jornalista, escritor e tradutor, que assina a apresentação do livro, sublinhando a importância de uma obra que revisita com precisão, a partir de muita pesquisa, nossa história recente que todos precisam conhecer. Para chegar ao livro, além de reouvir todos os discos, Márcio conta que leu mais de mil páginas de entrevistas dadas pelo compositor entre 1966 e 1986. Um detalhe da edição instiga ainda mais a leitura: os títulos dos capítulos 02 a 09 fazem referência a canções de Chico Buarque.
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As artes – literatura, poesia, música, teatro, cinema, dança, formas de expressão através das artes plásticas, do artesanato e das tradições – são nossas aliadas imbatíveis. Apontam horizontes, abrem caminhos, estimulam a reflexão, nos fazem dançar, representar e cantar livremente, colorindo nossos caminhos vida afora, na dor, na tristeza e na alegria.
Foto da Capa: Chico Buarque na Passeata dos Cem Mil / Reprodução / Memorial da Democracia
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