Acho que foi por vingança que eu passei a escrever nas margens dos livros.
Explico.
Quando eu tinha pouco mais de um ano e meio, eu tive um acidente doméstico. Animado com a recém-descoberta liberdade de caminhar por conta própria, acabei me deixando levar pela empolgação e saí correndo. No meio do caminho, inesperadamente, havia um tapete. Na frente do tapete, uma porta de vidro. Juntemos todos estes elementos e imagino que o leitor consiga montar a cena: tropecei no tal tapete e acabei despedaçando o vidro com a minha cabeça.
Nem imagino o desespero dos meus pais ao verem o filho no chão, cacos de vidro em volta, e um grande corte bem no meio da testa.
Apesar do susto, todos sobrevivemos, mas não sem consequências: no lugar do corte tenho até hoje uma cicatriz bem visível. Uma cicatriz, aliás, com a qual me acostumei e quase não percebo.
Volta e meia, entretanto, alguém pergunta o que aconteceu e eu conto a história do menino que uma vez foi derrotado pela animação e atravessou uma porta de vidro.
O interessante das cicatrizes de infância é que a gente normalmente não lembra a história por trás delas, precisamos que alguém nos conte o que aconteceu. É algo bem estranho, porque é uma parte de nosso corpo com uma história marcada, mas cuja narrativa não nos pertence. Ou melhor, só passa a pertencer depois que fazemos a nossa versão sobre o ocorrido.
Como se fossem marcas que a vida nos fez, mesmo que à revelia da nossa vontade. O contraponto seria a tatuagem, que é uma escolha, um registro que nós fazemos voluntariamente em nossos corpos. Para muitas pessoas, aliás, fazer uma tatuagem significa reaver para si um corpo, como nos casos de relações simbióticas com os pais ou após algum problema de saúde mais grave.
Pois bem, por um bom tempo, a cicatriz que eu tenho na testa restou como um enigma pra mim. Durante a adolescência, quando o corpo ganha evidência, ela foi um incômodo, eu tinha a sensação de que todos olhavam pra ela.
Foi também na adolescência que me aproximei da leitura. Como sempre tive certa dificuldade em performar certos comportamentos típicos desta época da vida, eu achava nos livros um refúgio, um lugar seguro onde eu podia esconder a mim e meu corpo. E minha cicatriz, claro.
Eu era um leitor voraz, ainda que muito cuidadoso com o objeto que tinha em mãos. Tomava cuidado para não estragar a lombada dos livros, nunca dobrava uma orelha na página e tinha pavor por não saber o que fazer com aquelas sobrecapas que por vezes vinham sobre a capa normal. Era muito difícil saber se um livro tinha sido efetivamente lido por mim, tamanho o meu cuidado. Eu tinha um certo pavor invejoso quando via alguém no ônibus lendo um livro todo dobrado ou, pecado dos pecados, quando alguém sublinhava – e à caneta, ainda por cima! – algum trecho. Como podiam fazer aquilo? Que tipo de agressividade era essa?
Bom, com o tempo eu fui percebendo que era uma agressividade que me faltava. Fui uma criança bem-comportada, do tipo que não dava trabalho para os pais. Tive também uma adolescência bastante pacífica, sem forçar limites, sem circular fora das margens. Em suma: sempre fui muito obediente, algo que me cobrou um preço razoável na vida adulta.
Foi só pela minha juventude que comecei a questionar essa agressividade tão contida. Quase todos os meus amigos tinham histórias interessantes para contar, histórias em que alguma borda era transposta, em que haviam cruzado alguma linha.
Começar a rabiscar os livros foi uma atitude que veio junto com me permitir não ser tão comportado. Passei a ter gosto por sublinhar frases, desenhar pontos de exclamação ao lado de algum trecho mais interessante, escrever percepções sobre personagens ou os pensamentos que me surgiam durante a leitura. Ler passou a ser um ato menos passivo, eu agora estabelecia um diálogo com o autor.
Durante a faculdade, muitos dos textos que estudávamos eram cópias dos livros de nossos professores. Foi aí que eu realmente me apaixonei pela subversiva arte de riscar os livros. Cada professor tinha um jeito próprio de fazer marcações, e eu ficava encantando em descobrir a lógica que fazia com quem alguém usasse colchetes para destacar parágrafos, enquanto outros faziam um, dois ou mais riscos à margem. Qual era o critério?
Como alguém bastante metódico, fui elaborando o meu idioma próprio de diálogo com o livro: os trechos grandes são abraçados por uma linha côncava, as palavras-chave de um parágrafo são circuladas, flechas ligam uma anotação à outra mais embaixo quando vejo que há uma relação entre elas. Quando uma reflexão pede mais espaço, não hesito em colar na página um grande post-it e transbordar as ideias ali.
Durante a pandemia, passei a rascunhar algo na primeira página dos livros. Eu escrevia as datas de começo e término da leitura, além de um pequeno parágrafo de agradecimento ao autor por ter me acompanhado naquele período tão difícil da vida. Como pequenas cartas de um amor platônico pelo autor que nunca me responderia.
Enfim, só há pouco tempo que fui saber que esse ato de escrever nos livros tem um nome, e um belo nome, aliás: marginália.
Faz todo sentido que a gente se aproprie de algo fazendo riscos no corpo, no corpo do texto. E também é bastante interessante a ideia de que seja nas margens que nós expressemos o que nos é mais íntimo, mesmo que isso seja a tímida vingança de um garoto outrora bem-comportado que agora, adulto, aprendeu o prazer de fazer cicatrizes nos livros.