No final do ano passado, em Escrevinhando, contei do meu amor às letras e às cidades para anunciar o lançamento do meu primeiro livro de crônicas. A maioria delas, como contei lá, saídas daqui, da Sler. Naquele momento, apesar da minha prática com a escrita em outros formatos, não fazia ideia do que significava ser um escritor de crônicas. Falo das descobertas que vieram junto com o livro, a começar pelo lançamento em uma feira do livro tradicional como a de Porto Alegre.
A editora, em seu trabalho de divulgação, vai marcando entrevistas e outros modos de fazer o autor falar sobre seu livro e autografá-lo para quem desejar. Além de escrever, eu agora estava conversando ao vivo com os leitores. A missão, se é que se pode chamar assim, era fazer com que esses ouvintes se interessassem em ler meu livro Cidade Abstrata, publicado pela Editora Libretos. O melhor dessa experiência foi conhecer quem me lia e também descobrir que havia muitos interessados nos assuntos que para mim são tão caros.
Hoje, comemorando a coluna número 70, resolvi contar um pouco dessa experiência. Não apenas porque quero dividir – e agradecer – a rica troca de ideias que tenho tido com vocês, mas porque percebi que há um vazio a ser preenchido. Percebi que o desconhecimento sobre o assunto cidade leva a um entendimento de que o estranhamento que estamos vivendo em relação à nossa cidade é o resultado natural do seu processo de crescimento. Aliás, diga-se, logo, o crescimento atual é negativo. A população encolhe e os problemas crescem…
A maioria da população não relaciona os discursos de um Plano Diretor, por exemplo, com seus efeitos concretos no cotidiano da cidade e acaba por aceitar, sem questionar, sua aprovação. Ainda mais que esses planos vêm acompanhados de discursos recheados de expressões e palavras que convencem e satisfazem todo mundo, como participação, crescimento econômico, densidade, racionalidade, emprego, meio ambiente, entre outras. Anos depois, quando o cidadão se incomoda com o que estão fazendo com seu bairro ou com sua rua, nem lembra de relacionar com aquilo que a Câmara de Vereadores tinha aprovado em seu nome.
No momento em que passa a ler e conversar sobre os interesses e ideologias que estão por trás do que se vê hoje na cidade real, concreta, sua postura muda rapidamente. Com brilho nos olhos, agora surge a inevitável pergunta: como reagir? O que se pode fazer?
A melhor resposta, no meu entender, é aumentar o número de pessoas que possam relacionar o que se vê na cidade com o que é decidido nas instâncias de poder, de olho em alternativas para adequar os planos diretores aos modos contemporâneos de fazer cidades. E, em tempos de mudança climática, essa tarefa é ainda mais urgente. Não podemos deixar a indústria imobiliária continuar impondo seus interesses particulares como se fossem os de todos.
Cidades do mundo todo estão adotando posturas radicais de mudança. Derrubam viadutos, arrancam asfalto, barram automóveis, plantam árvores, destapam arroios e por aí vai. Nós, no Brasil, não. Seguimos com conceitos nascidos em meados do século passado e insistimos neles sem fazer sua crítica, sem conhecer sua história, ideologia e interesses que lhe deram origem.
Meu papel, com minhas crônicas, tem sido o de fazer uma leitura da cidade tal qual ela é, em uma linguagem acessível e comum a todos, mostrando as belezas, feiuras, contradições, interesses e o odioso preconceito que, infelizmente, divide nossa cidade em ilhas de iguais. Tento elucidar, tirar o mistério de como ela chegou aonde chegou e mostrar que nesse processo não existiu inevitabilidade. Foram e são escolhas.
Podemos fazer outras escolhas. Sem dúvida. Mas quais? Essa é a questão mais premente que se impõe e precisa ser construída em conjunto para ser sólida. Na última campanha à prefeitura, não vi nenhum candidato defendendo a importância de mudarmos de paradigma, como se vê, por exemplo, em Anne Hidalgo, prefeita de Paris.
A Matinal, associação de jornalismo e cultura sem fins lucrativos, observando o efeito propagador que essas conversas podem ter para o futuro da cidade, me convidou para participar da Escola Matinal. A ideia não é exatamente a de um curso, no sentido estrito, mas sim de proporcionar alguns encontros para refletir sobre a história urbanística de Porto Alegre e discutir o futuro das cidades – em geral e da nossa em particular. Compreender por que Porto Alegre é como ela é para poder pensar sobre a cara que queremos que ela tenha nos anos que virão. Será um desafio, mas, pelo retorno que os encontros do lançamento do livro me proporcionaram, estou apostando que será gratificante e motivador. Então, já deixo a provocação: quem gostaria de conversar sobre as cidades de forma regular?
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Fotos: Alex Rocha / PMPA