A série “Cidade Invisível”, da Netflix, foi nosso programa de família nesse feriado de Páscoa. A recém-lançada segunda temporada se passa no Pará, principalmente em Belém, e explora a mitologia brasileira em seu enredo. A Mula Sem Cabeça, Matinta Pereira e outras histórias circulam pela tela com um elenco marcado pela diversidade, atrás e à frente das câmeras, tendo a atriz e artista visual indígena Zahy Tentehar (antes conhecida como Zahy Guajajara, foto da capa) como umas das protagonistas.
Aqui em casa todo mundo aprovou o seriado que traz os garimpeiros e a destruição ambiental como vilões e valoriza a ancestralidade e o respeito aos saberes tradicionais. Se estamos acostumados a ver as barbas brancas de homens brancos como símbolo da sabedoria, nessa série, ela é encarnada por uma idosa indígena.
Como disse há pouco Rejane Martins aqui na SLER:
Hoje, há uma produção muito maior, que nos conduz à formação de um imaginário afirmativo e informativo para nossas crianças com referência às nossas origens e à nossa história, que passa por culturas não europeias, não embranquecidas.
“Cidade Invisível” fala da invisibilidade dos mitos que circulam entre nós, mas também da invisibilidade dos indígenas como indivíduos, essas pessoas que dizem “minha floresta e o povo são uma coisa só”. Traz para nossas telas e exporta mundo afora o “futuro ancestral” que fala Airton Krenak e que, como explica Patrícia Carneiro, “exprime que não teremos futuro sem o resgate das cosmovisões sustentáveis do passado.”
O que me chamou muito a atenção foi que a série é falada em português e… tukano. Ouvir esse idioma, que foi tornado oficial no município amazonense de São Gabriel da Cachoeira, lembra a diversidade das centenas de línguas faladas pelos povos originários e que igualmente sofrem de invisibilidade.
Também pudera, Caetano W. Galindo, em seu recente e delicioso livro “Latim em Pó”, não esconde o espanto em como o Brasil é coberto pela língua portuguesa e por falantes exclusivos desse idioma. Percorrer uma distância como daqui para São Paulo e topar somente com falantes da mesma língua é algo virtualmente impossível em qualquer outro continente – inclusive na própria América do Sul.
O livro lembra que o domínio da língua portuguesa sobre esse território foi imposto a ferro e sangue e que é mais recente do que faz parecer, principalmente na Amazônia, último rincão conquistado. Mas somente após o extermínio de cerca de 40% da população da província do Grão-Pará na repressão à Cabanagem e o povoamento da região com migrantes nordestinos.
Caetano vai nos mostrando que o nosso português não surge do latim clássico, mas do chamado “latim vulgar”, falado pelo povo e não pelos grandes oradores que a elite costumava venerar. E o nosso português está mais para “pretoguês”, termo pejorativo nos séculos passados e ressignificado como uma canção de resistência por Lélia Gonzalez.
O português, segundo ele, não se espalhou pela obra de meia dúzia de senhores, mas dos milhões de escravizados negros que foram jogados para cá e para lá nesse nosso vasto território onde sua força renderia mais dinheiro para a tal meia dúzia de senhores. “Apesar das adversidades, foi a língua falada por negros e mestiços que dominou o Brasil”.
Ou seja, enquanto olhamos com lupa nossa língua e falamos de latinismos e galicismos e outras fontes europeias como em um chá de imortais de fardão na Academia, as dobras mais profundas da nossa língua revelam as dores de quem a aprendeu em meio ao desterro, na força do chicote e após ser obrigado a silenciar o seu próprio idioma.
Caetano Galindo nos mostra que esse processo de extinção da variedade linguística chama-se glotocídio. Aqui, o português tomou o lugar da língua geral, do nheengatu e de outras línguas crioulas nascidas do encontro de colonizadores e colonizados. Os falantes do tukano de “Cidade Invisível” nos lembram que, se o garimpo e o desmatamento levam ao ecocídio e ao etnocídio, destruindo os ecossistemas e os grupos humanos que vivem neles, também exterminam as línguas que eles falam.
Cada perda leva um pouco da riqueza que é a diversidade humana, linguística e a biodiversidade. Esse processo que leva séculos foi acelerado nos últimos quatro anos por pessoas que viam, em Brasília e nos garimpos, essa destruição como “normal”. O “normal”, palavra tão presente no vocabulário de nosso presidente anterior e seus adeptos, pressupõe um “anormal”, inferior, ilegítimo, que merece ódio e até mesmo a violência.
Mas, como diz a Cuca do último episódio desta temporada de “Cidade Invisível”: o normal não existe.
E, pensar que quando eu era criança tinha medo da Cuca. Hoje, tenho muito mais medo dos homens e mulheres que acreditam que o normal existe.