Que um rio não é o mesmo a cada vez que o vemos é sabedoria antiga, que monumentos de pedra não garantem eternidade já aprendemos, mas desde quando o mundo cortou laços com a busca da perenidade?
Acordamos de manhã e o celular está diferente de ontem, entramos no banco digital e lá vamos nós procurar o lugar onde dar o clique que “sempre” esteve ali (pelo menos no último mês). As páginas nos sites de notícias pululam na nossa frente para inserir publicidade ou o que seja. Ao entrar em qualquer site da internet depois de algum tempo, ele está visualmente diferente. “Nada será como antes, amanhã” prenunciou Milton Nascimento com clarividência.
Acho graça dos discursos sobre a importância da identidade visual. As logomarcas estão sempre sendo atualizadas à contemporaneidade que nunca se estabelece. Tenho pena dos designers que em algum momento vibraram com sua arte: cheguei lá, ficou lindo, perfeito! Que nada, vai durar poucos meses.
Não sou designer gráfico, mas essa eterna mudança me causa mal-estar. E ainda é preciso aguentar o inevitável questionário de avaliação: foi bom para você? Queria responder só uma coisa: não mexam mais, não tem o que melhorar! Se tem, não preciso delas. E não me peçam avaliações, descubram vocês mesmos se estão fazendo um bom trabalho.
Não se trata de uma maldade deliberada ou teste de paciência, o que há é uma vontade de nos anestesiar, de nos deixar ocupados para não termos espaço para pensar. Sim, pelo que eu sei, nosso cérebro automatiza a maior parte de nossas reações para que possa se ocupar de coisas mais importantes do que descobrir onde está o botão de transferência de pagamentos no dia de hoje. O livro Superindústria do Imaginário, de Eugênio Bucci, esclarece muito bem tudo isso.
Entretanto, bem antes da internet, foi com os shoppings centers que comecei a me dar conta da liquidez do mundo. Vamos fazer um teste: lembre-se de um shopping qualquer que você tenha conhecido na sua inauguração. Agora, compare-o com ele mesmo nos dias de hoje. Eles ainda se parecem? As lojas são as mesmas e estão no mesmo lugar? Duvido. Pela minha experiência, em mais de um shopping, eu aposto que não. O mundo físico dos shoppings, antecipadamente, adotou a dinâmica que viria a ser a norma da internet, onde nada é fixo. A culpa não é da Internet, portanto. Ela nasce com a necessidade de manipular o mercado de consumo, ou seja, nós. Para isso, não devemos pensar, contemplar, meditar. Nada de perenidade. Pelo contrário, precisamos estar excitados, ansiosos, necessitados, em busca de um preenchimento que não vai acontecer.
Não é coincidência que em termos históricos, nunca tivemos uma época em que falamos e nos preocupamos tanto com a memória. Há órgãos governamentais em todas as instâncias trabalhando pela preservação do patrimônio histórico. Inclusive mundial, pela UNESCO. Faz sentido, estamos tentando segurar o mundo que está se esvaindo como líquido pelo ralo. A Revolução Industrial nos transformou, por fim, no principal insumo das fábricas: se não consumirmos, elas param. E o mundo acaba, nos ameaçam. Então trabalhamos para que a “máquina” – aqui em seu sentido amplo – não pare.
Enquanto a liquidez do mundo estava nos shoppings, internet e redes sociais, menos mal. Ainda era possível não ir ao shopping ou puxar o fio da tomada. O problema é que agora ela invadiu a cidade. A cidade de ontem, não será amanhã. Com velocidade crescente, ela vai sendo repaginada em intervalos cada vez menores.
O capital privado bota abaixo o que acabou de construir com a maior naturalidade, construtoras unificam lotes destruindo o registro do parcelamento do solo original, retrofits são realizados como refresh em fachadas que mostravam sua idade, síndicos não tem pudor de aplicar porcelanatos nas fachadas de edifícios art déco. A prefeitura distribui painéis LED pelas calçadas e esquinas para que vídeos atropelem os pedestres com apelos de consumo. Prédios começam a imitar o que já é comum na Ásia, usando painéis LED à guisa de fachadas, edifícios exibem luzes coloridas temáticas ou não espichando a excitação do Natal Comercial para o ano inteiro.
Não vamos precisar decidir se aceitaremos o metaverso ou não, ele já está se imiscuindo no nosso espaço cotidiano. Pelo visto, não faltará trabalho para designers repaginarem nossas cidades virtuais, isso se a IA não se ocupar disso, mas posso imaginar sua frustração com a efemeridade de seu trabalho.