Todos sabemos dizer o nome da cidade que nascemos ou moramos, está na certidão de nascimento, na conta de luz… mas, sinto dizer, a cidade é uma miragem, elas são luz do passado como são as estrelas do céu.
Se olharmos imagens do globo à noite veremos com nitidez grandes zonas de luz que engoliram centenas de cidades tornando-as grandes manchas espalhadas pelos cinco continentes. Seria mais apropriado dizer que vivemos num território planetário, mais ou menos urbanizado em algumas regiões. A separação entre urbano e rural se esfumaçou. A diferença, hoje, está na densidade populacional e não em um modo de vida diferenciado. Pense em 50/70 atrás como era gritante a diferença entre quem vivia na cidade e no campo.
As cidades cresceram tanto que se tornaram intangíveis, é impossível apreendê-las. A população mundial, ainda no século passado, deixou de habitar aquilo que durante milênios chamamos de cidade. O que ainda chamamos de cidades são divisões políticas antigas, resquícios de um passado não tão longínquo. Talvez os bairros digam, hoje, mais de nós mesmos do que as cidades. Já se percebe um vínculo de identidade relativo a eles.
O conceito de cidade carrega uma ideia de comunidade, de pessoas que dividem uma ética, uma maneira de conviver. Vem daí a palavra urbanidade. Em situação de risco, os habitantes se defendiam mutuamente. Os cidadãos reconheciam com facilidade a si mesmos e aos “estrangeiros”.
Essa cidade antiga, imaginária, ainda subsiste em nossas cabeças enquanto o território, onde de fato vivemos, passa por outra realidade. Ele é povoado por ilhas de iguais ou, mais precisamente, pelos que se diferenciam pela classe social, cor, dinheiro, costumes. Fica difícil dizer que um conjunto de núcleos cercados por muros, câmeras e seguranças ainda formam uma cidade.
Mas o fato é que ainda nos reconhecemos como cidadãos sejam elas abstratas ou não. Eu sou um porto-alegrense, você talvez um carioca ou paulistano ou de uma outra das milhares de cidades brasileiras. A questão então é: onde está essa cidade a que nos identificamos? Ela está cada vez mais no plano simbólico, no reconhecimento de uma identidade construída ao longo de uma história local. Já não vivemos em cidades, mas a carregamos dentro de nós.
Até quando?
Se a vida em território desmaterializou a cidade, agora iniciamos uma nova etapa: a da virtualização das relações interpessoais, do comércio, do ensino, da cultura e tudo o mais. As relações do mundo virtual não tem vínculo com o território, com o lugar. Perceba como em nossas conversas telemáticas já não dizemos onde estamos. Isso já não importa. Já se banalizou, também, o fato do colega de trabalho de todo dia poder estar em outro estado ou outro país. Não faz diferença.
O que me preocupa é constatar que deixamos de reconhecer e promover os valores que podem manter nossa ligação com a terra, com o lugar. Cidades históricas reconhecidas pelo Patrimônio e turismo claro que o fazem. Outras, como as brasileiras que se deixaram seduzir pelos interesses do mercado imobiliário, estão ficando todas iguais, dependem de placas de identificação para serem distinguidas entre si. Um letreiro para selfies no lugar de símbolos concretos.
Intervir na cidade não poderia ser, agora ainda mais do que nunca, uma atividade simplesmente pragmática, econômica. As implicações são profundas, afetam o que resta da identidade da cidade e podem fazer com que percamos nossas referências concretas. Você já pensou em viver num mundo desconectado do mundo físico? Sendo apenas um ID e senha, alojado em um ponto do mundo urbano global identificado apenas pelo GPS?
Não quero assustar ninguém, mas se não mudarmos a maneira de tratar nossas cidades, é para lá que estamos indo. Já falamos aqui nesta coluna do descaso com a memória, de casas de escritores que vem abaixo, do desinteresse pela delimitação de Áreas de Interesse Cultural, da venda do cais do porto, da ideia de transformar o quarto distrito numa Manhattan, dos parques temáticos e rodas gigantes e outras atrações que vão nos transformar numa Disneylândia.
O quanto de tudo isso tem o nosso jeito porto-alegrense de ser? E que jeito seria esse?
Essa é uma discussão que não pode ser resolvida no setor de financiamento dos bancos ou nos conselhos de planejamento dominado por interesses financeiros do mercado imobiliário. E muito menos em leilões na Bolsa de Valores de São Paulo. Mas é o que está acontecendo.