Espaço de trocas, de vivência, de contato com a natureza, que proporciona muitos jeitos para aprendizagem de distintas áreas do conhecimento, fortalecimento de redes de afeto e cidadania. Além, claro, de produção de alimentos, temperos, ervas. As hortas comunitárias possibilitam uma infinidade conexões: entre pessoas, entre os seres vivos, consigo mesmo e tudo que nos cerca.
Para quem mora no interior, talvez isso não ressoe tanto. Mas para quem vive num mar de concreto, é um baita diferencial poder usufruir de espaços para o plantio. No sábado, dia 15 de abril, estive no o 9º encontro do Fórum de Hortas Urbanas e Periurbanas de Porto Alegre, o Faupoa, na Faculdade de Agronomia da UFRGS. Cheguei no momento da apresentação dos grupos. A energia e o contentamento dos participantes – maior parte do sexo feminino – era contagiante. Cheguei desanimada e saí radiante.
Ao ouvir os relatos das pessoas com brilho no olho, senti que essa vivência em redor de hortas comunitárias é um excelente caminho para regeneração e construção de várias dimensões. Tanto do nosso íntimo, quanto da sociedade, do planeta. Dos laços afetivos. Um espaço para cura.
Saí tocada do encontro.
Fiz uma live. Veja aqui a live onde entrevistei duas pessoas bem representativas que falaram sobre o evento.
Espaços mágicos de transformação
Já acompanhei – não cuidei ainda – de algumas hortas em Porto Alegre. É algo que exige muita dedicação e energia. A que participei no Centro Municipal de Cultura, Arte e Lazer Lupicínio Rodrigues, nas aulas do Atelier Livre da Prefeitura da Ana Flávia Baldisserotto, com a pandemia, foi abandonada. Aquela horta havia sido montada pela Mônica Meira, a partir de iniciativa da Cláudia Rodrigues. A que ficava próximo ao Galpão do Plátano, a Horta da Formiga, no centro, também encerrou as atividades.
Sei que estão surgindo hortas em praças e escolas, como a do Colégio Infante Dom Henrique, no Menino Deus. Mas se você gosta desse assunto um lugar imperdível para se conhecer é a Horta Comunitária da Lomba do Pinheiro. Vale conferir aqui o texto que foi publicado aqui na Sler sobre o local e as articulações para criação de políticas públicas pró-hortas.
Cresci entre horta e árvores
Sei muito bem o quanto cuidar de uma horta requer amor e cuidado. Meu lugar de fala sobre esse assunto é de quem cresceu em uma casa com um pátio cercado por horta e árvores frutíferas. Meu pai, descendente de colonos italianos, cultivava legumes, verduras, frutas, oleaginosas, entre muitas outras coisas.
Ele adotava práticas que hoje eu procuro repetir no meu quadrado. Aqui em casa, também recolho água da água da chuva para as plantas. Fazemos adubo com os restos de cascas e folhas para colocar nos vasos.
O impacto de ter crescido comendo a produção caseira, confesso, só fui sentir muito tempo depois. Certa vez, em uma viagem, aos 26 anos, onde ninguém sabia de onde eu vinha, quem eu era, olharam pra mim e disseram: “Tu tens cara de quem comeu verdura na infância”. Comi mesmo. E como. Adorava colher a cenoura e devorar na hora. Subir em cima da ameixeira, aquela amarelinha. Tinha os meus galhos favoritos onde eu me espalhava, me deitava e conversava com a árvore. Que saudade daqueles momentos de final de tarde.
Uma época sem cercas, grades e muito espaço para inventar brincadeiras. Meus animais de estimação eram as galinhas e os pintinhos. Elas tinham nome e quando matavam alguma eu me negava a sentar na mesa e sentenciava: “Não vou comer esta defunta”. Certa vez, apertei tanto uma galinha que saiu um ovo. O galinheiro era o local onde se levavam os restos de comida. Aprendi desde muito cedo a fazer a separação dos resíduos, pois o que as aves não traçavam virava adubo.
Nossa horta também era apreciada por visitantes insólitos. Uma vez, três vacas entraram no pátio porque o portão da garagem ficou aberto. Elas comeram todos os pés de alface dos canteiros. Meu pai ficou furioso. Descobriu quem era o dono dos animais e foi lá cobrar o prejuízo saboreados pelos animais.
Esse espaço sagrado onde eram produzidos os alimentos da família tem muitas histórias (rende até um livro, tem causos e tragédias). E cada época tinha seus cultivos. No tempo dos tomates, no verão, meu pai chamava todo mundo para ajudar a fazer molho. Eu perdi as contas de quanto rodei a manivela da máquina de moer carne colocando pedaços de tomate. Lá em casa tinha uma boa produção de tomates gaúcho e paulista. Havia todo um ritual para o preparo do molho que seria estocado para consumo ao longo do ano. Meu pai usava um tacho enorme de cobre para o preparo. Reunia lenha para que o fogão ficasse com fogo por longas horas onde os temperos iam sendo adicionados. Até hoje sinto na memória o gosto daquela receita.
Na época das parreiras carregadas, era comum a gurizada pular o muro para pegar cachos de uva e sair correndo. Tínhamos branca, rosé e preta. Ah, o sabor, o deleite de comê-las no pé é algo difícil de explicar. Até hoje desfruto das nozes pecan de uma árvore que deve ser uma das primeiras nogueiras de Cachoeira. O que meu pai plantou foi semeado dentro e fora de mim.
Atualmente, cultivo alguns pés no meu terraço. Acompanho todo o desenvolvimento das plantas, observo-as bem de pertinho. Inclusive os insetos que trazem algumas pragas. A cada dia, surgem novas folhas, flores e despontam galhos, que logo mais darão sustentação a laranjas, limões, tomatinhos cereja. Tudo na altura dos olhos. Tudo plantado em vasos.
Boa parte das pessoas não tem a menor noção do quanto é prazeroso e, ao mesmo tempo, trabalhoso estar na lida da terra. Ainda mais quando se cultiva o que vai alimentar os outros. E quando se vivencia esse processo em uma horta é algo mágico.
Escrevo essas linhas para reforçar o quanto estou apreciando essa movimentação de pessoas envolvidas com hortas na Capital dos gaúchos. Isso porque acredito que uma das mais fortes vocações do município que já foi chamado de Capital do Mercosul é o bem viver. Vale lembrar que Porto Alegre que tem o maior número de feiras orgânicas do País, quiçá do mundo. E tudo isso, fruto de um exaustivo trabalho da agricultura familiar. De pioneiros da Grande Fraternidade Universal (GFU) (foi dali que surgiu a necessidade de se ter entreposto de orgânicos), da saudosa Cooperativa Coolmeia. Hoje, ao lado do município, está a maior plantação de arroz orgânico da América Latina, em assentamentos do MST.
De tudo que ouvi no encontro do Faupoa, uma das frases que mais me marcou é que “a melhor colheita é o abraço”. Considero o cultivo de hortas uma forma de abraço, de fato. Um afetuoso “quebra-costela” a si mesmo, ao outro, ao local onde moramos, ao planeta. Nada melhor que um laboratório ao ar livre para nos darmos conta dos ciclos. De que tudo tem seu tempo. Sem falar que colocar a mão no verde é bem mais prazeroso do que deslizar os dedos nas telas e teclados. E isso precisa ser transmitido às crianças e aos jovens em todos os lugares possíveis. Nas escolas, em casa, nos espaços comunitários. Viva a coletividade conectada à natureza.
Saiba mais sobre o Faupoa aqui.