*Com Fabrícia Barbieri – reeditado às 10h37
As cidades-esponja foram notícia no Fantástico e em inúmeras conversas na última semana. O conceito foi criado pelo arquiteto chinês Kongjian Yu, que utilizou a ciência ambiental para projetar obras em mais de 70 cidades para proteger cidades de eventos extremos climáticos, como as enchentes que estamos enfrentando no Rio Grande do Sul.
O arquiteto explica que as cidades-esponjas estão baseadas em três ideias principais: reter a água assim que ela cai do céu, reservando espaço para açudes e com a presença de grandes áreas permeáveis e porosas, não pavimentadas; diminuir a velocidade dos rios e, por fim, adaptar as cidades para que elas tenham áreas alagáveis, para onde a água possa escorrer sem causar destruição, propondo a criação de grandes estruturas naturais alagáveis para que a água possa ser contida por um tempo e, depois, rapidamente absorvida pro lençol freático sem invadir as casas.
Joel Goldenfum, doutor em Hidrologia pela Universidade de Londres e diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH-UFRGS), aponta que a ideia de cidades-esponja é uma alternativa eficaz para ação na drenagem urbana, que visa controlar os alagamentos, ou seja, para reduzir o impacto das chuvas que caem sobre a cidade. Contudo, não tem o mesmo efeito sobre as inundações ribeirinhas, aquela que se dá por transbordamento da água do leito do rio para a várzea de inundação.
O conceito é novo e interessante, porém, nada do que Kongjian Yu fala é novidade para quem estuda meio ambiente, hidrologia ou o direito ambiental. A adaptação das cidades para diminuir ou evitar os efeitos dos eventos climáticos extremos seria facilitada com a observância da legislação ambiental, que vem sendo constantemente atacada em nosso país. A manutenção das áreas de preservação permanente (APPs), por exemplo, nas margens do Rio de Sinos, levariam naturalmente a uma desaceleração de sua velocidade, auxiliando a conter os efeitos das cheias. Da mesma forma, a grande maioria das cidades atingidas não precisa necessariamente de obras ou criação de novas estruturas, fazendo mais sentido manter ou recompor suas áreas alagáveis, suas áreas úmidas que, no caso do Rio Grande do Sul, são os banhados.
Para falar das áreas úmidas e banhados, eu assino essa semana a minha coluna junto com a bióloga Fabrícia Barbieri, mestre em Ambiente e Sustentabilidade pela UERGS e pesquisadora do tema, com diversas publicações destinadas ao assunto.
As áreas úmidas são ecossistemas ricos, com muita atividade e que servem de habitat para uma grande biodiversidade, com algumas espécies exclusivas destes ambientes. Além disso, possuem extrema importância para o ciclo hidrológico da região onde estão inseridas, fornecendo água para diversas espécies. Além disso, fornecem água para consumo humano e exercem um papel crucial no controle de inundações, uma vez que funcionam como uma espécie de “esponja” na paisagem onde estão inseridas, evitando enchentes ou secas extremas.
Historicamente, as áreas úmidas são fontes de recursos naturais para a espécie humana, sendo um dos ecossistemas mais produtivos no mundo, nutrindo civilizações antigas, como Egito e Mesopotâmia, as quais utilizavam estas áreas para agricultura e pecuária nos diferentes períodos de inundações. Nos trópicos e subtrópicos, as áreas úmidas, por possuírem períodos de inundações previsíveis, as populações se adaptaram e manejaram seus cultivos de acordo com estes períodos e a partir disso, investiram em artes e novas tecnologias, aprimoraram a medicina etc., e formaram centros comerciais e culturais nestas regiões.
O tratado internacional que regula a matéria, a Convenção de Ramsar, de 1971, define que “Áreas Úmidas são áreas naturais ou artificiais, permanentes ou temporárias, com água parada ou fluindo, salobra ou salgada, incluindo áreas de águas marinhas nas quais a profundidade na maré baixa não exceda seis metros”.
Existem diversas denominações para os tipos de áreas úmidas no Brasil, decorrentes das variações das espécies que hospedam, como manguezais, campos alagáveis, veredas, planícies inundáveis, igapós, pantanal, brejos, pântanos e os banhados. Banhado é um termo utilizado no Sul do Brasil para caracterizar um tipo de área úmida, sendo uma palavra proveniente do espanhol bañado, devido às influências dos países vizinhos, Argentina e Uruguai.
Devido à importância ecológica dos banhados, estas áreas são consideradas áreas de preservação permanente no Estado do Rio Grande do Sul, através do Código Estadual de Meio Ambiente (Lei Estadual 15.434 de 9 de janeiro de 2020), sendo protegidas também por outras normas, tanto no âmbito federal como estadual.
Estas áreas possuem diversos benefícios socioeconômicos, os quais vão desde abastecimento de água, alimentação (recursos pesqueiros e agricultura), recursos energéticos (turfa, lenha, hidroelétricas), materiais de construção, produtos medicinais, transporte, áreas de recreação e turismo. Por estes motivos, ao longo da história, as cidades e as populações humanas associadas foram se aglomerando nos arredores destas áreas, principalmente às margens de rios e, consequentemente, em suas áreas de inundação.
O uso dos recursos naturais desses ecossistemas pelas populações humanas podem trazer impactos negativos, diretos ou indiretos, aos banhados e outras áreas úmidas. Uma das principais causas de perdas de áreas úmidas em todo o mundo é a conversão destas áreas para o uso agrícola e atividades associadas, além de mineração, geração de hidroeletricidade, construção de estruturas de proteção contra cheias. A instalação de indústrias e a expansão de áreas urbanas contribuem para esse quadro com a poluição, que é agravada pelas alterações de margens de rios e lagos e a introdução de plantas exóticas.
Exemplos de impactos resultantes da ação antrópica, realizada por humanos, costumam ser frequentes na literatura científica, porém alguns se sobressaem pela extensão dos danos que desencadeiam. Um caso que merece destaque foi identificado pelos desequilíbrios ambientais registrados na biota do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul, que estão relacionados à implantação de projetos de silvicultura com Pinus sp., entre as décadas de 1970 e 1980. Essa ação promoveu a drenagem de áreas úmidas e remoção de dunas, o que causou aceleração do processo de assoreamento da lagoa, assim como a redução de zonas de vegetação nativa, resultando no comprometimento de diversos ecossistemas frágeis, de grande importância em nível mundial para a proteção de áreas úmidas e da avifauna migratória. Importante enfatizar que, o Parque Nacional da Lagoa do Peixe é um dos sítios Ramsar do estado, sendo uma área úmida com importância internacional.
Um exemplo característico de uso irracional dos ambientes naturais no Rio Grande do Sul, em especial em áreas úmidas, com consequências socioambientais extremamente negativas, é a urbanização e industrialização, desde a década de 70, na região da planície de inundação do Rio Gravataí, na Região Metropolitana de Porto Alegre, abrangendo a área da Zona Norte de Porto Alegre e Cachoeirinha que ocorreu, e ainda ocorre, muitas vezes de maneira desordenada, causando vulnerabilidades sociais e ambientais, causando enchentes, como a que estamos vendo na atualidade, que afetam principalmente as populações mais carentes, pois as enchentes sempre chegam antes aos casebres do que às mansões.
Importante ressaltar também que, sob o ponto de vista econômico, preservar as áreas úmidas para a contenção de grandes enchentes sai mais barato que a construção de infraestruturas de drenagem em áreas de risco. Apesar das pesquisas realizadas sobre este tema enfatizarem o valor social e ambiental das áreas úmidas, e dos banhados, a sociedade em geral ainda não possui a percepção da importância de preservação destas áreas. Muitas vezes, áreas de banhados são vistas como entrave para o desenvolvimento urbano e o “progresso”.
Muitos cientistas enfatizam a importância de estudos que envolvam o uso sustentável destas áreas e a identificação dos principais impactos ainda causados a estes ecossistemas. Ações humanas que impactam estes ambientes estão na origem de desastres ambientais e prejuízos econômicos de elevados custos, como as atuais enchentes que estão afetando as diversas regiões do nosso estado, além de casos de desmoronamentos de morros na região da serra dos estados de Rio de Janeiro e de São Paulo.
No momento em que se começa a ser discutida a reconstrução do Rio Grande do Sul, é preciso seguir a advertência da excelente matéria de Andréia Azevedo Soares no jornal “Público”, de Portugal: é urgente reconstruir, mas “sem repetir os erros do passado”. Os especialistas ouvidos na reportagem dizem que a reconstrução do Estado deve considerar a nova realidade climática, com chuvas mais intensas, como Henrique Evers, gerente de desenvolvimento urbano da organização sem fins lucrativos World Resources Institute (WRI) no Brasil, ao advertir que a “ocupação na frente de rio vai ter de recuar, a ponte vai ter de ser mais alta e a ocupação nas encostas já não vai ser possível”.
Uma legislação ambiental com maior proteção e maiores restrições a pessoas e empresas será necessária, sendo imprescindível o papel da fiscalização ambiental, que deverá ser vista pelo que ela realmente é: um instrumento de proteção de vidas humanas e da biodiversidade. Tudo isso passa por uma revalorização do papel das áreas úmidas e banhados: não mais como entraves ao desenvolvimento mas para os verdadeiros salva-vidas que são, protegendo-nos das forças da água com a força da vida que os habita. Os mortos, desaparecidos e desabrigados na catástrofe que vivemos, assim como as gerações futuras de gaúchos e gaúchas, merecem isso.
*Fabrícia Barbieri é graduada em Ciências Biológicas pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Especialista em Educação Ambiental pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Mestre em Ambiente e Sustentabilidade pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS).
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Foto da Capa: Divulgação
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