Adoraria falar de Veneza e outras cidades formadas por ilhas. São lindas! Mas não, o assunto hoje é sobre ilhas de outro tipo, nada glamorosas. Falo do arquipélago em que as cidades brasileiras se transformaram. Foi tentando entrar a pé no Cais Embarcadero, em Porto Alegre, que esta imagem se formou em minha cabeça. Estava caminhando em direção à beira do lago quando um segurança chamou minha atenção: “Senhor, por aqui só automóveis”. Olhei as cancelas e cercas em volta e, realmente, me senti invadindo um estacionamento privado. Então ele me explicou: o acesso para pedestres é láááá perto do Gasômetro. Até pensei em argumentar que eu a pé era igualzinho aos que entravam sentados em seus carros, mas ele era muito simpático e dava para ver que cumpria ordens.
De fato, encontrei, mais adiante, a entrada para pedestres: um brete que dava passagem a uma trilha, vejam só, por entre automóveis… Estava eu outra vez num estacionamento, agora vigiado por seguranças munidos de radiotransmissores. Entrar por ali, tudo bem, eu até tinha cara de quem tem carro, podia circular livremente. Mas desisti de seguir pelo caminho entre os automóveis, não quis estragar o prazer que tinha trazido da recente viagem a Buenos Aires. Lá não cruzei esse tipo de cerca, andei de ônibus o tempo todo e fui pedestre sem ser barrado.
Se o Embarcadero fosse o problema, nem perderia tempo escrevendo. Ele é folclórico, um acampamento provisório – apesar do medo que eu tenho dessa palavra –, há de passar. A questão é que aquela ilha apartada do Centro Histórico me fez pensar nas tantas outras ilhas que formam Porto alegre. Lembrei dos shoppings, dos condomínios fechados, das favelas, das lojas e farmácias onde os carros entram junto com os compradores. Quantas vezes por dia entramos e saímos de nossos carros, muitas vezes para andar duas ou três quadras até a próxima loja, trabalho ou lazer?
Por que nossas cidades são assim? A resposta mais imediata é que a agricultura e o progresso tecnológico permitiram a formação e o crescimento das cidades, beneficiando a necessidade do ser humano viver em sociedade. Bonita essa ideia. Como se tudo fosse natural. O lado ruim, é que a gente, sem querer, acha que as cidades só poderiam resultar no que são e, pior, não poderiam ser diferentes. Um determinismo histórico e fim de papo. Não questionamos, não perguntamos. Aceitamos como inevitável viver do jeito que vivemos, desdenhamos das alternativas que às vezes aparecem chamando-as de utópicas. Vemos nessa palavra não uma expressão do desconforto com o presente, mas uma alucinação em relação ao futuro. Temos que prestar mais atenção na fala de Edson Luiz André de Souza, autor de Furos no Futuro: psicanálise e utopia.
A cidade não é uma máquina funcional – apesar de haver defensores dessa ideia –, ela é constituída de valores simbólicos e espirituais que, sim, demandam funcionalidades. São as formas de viver e de se relacionar com os outros e com o mundo natural e material que dão as cartas nas decisões de como construir as cidades. Há expectativas por trás de sua construção. A maneira de ser do indivíduo na sociedade, seus valores, afetos, medos e preconceitos se materializam na sua maneira de morar e circular. Por exemplo, você já parou para se perguntar por que o vidro da sua cozinha é martelado? Cozinha era lugar dos escravizados trabalharem, lugar para não ser visto. E tem aí outra ideologia formadora da cultura brasileira: trabalhar era para escravizado, depois para pobre: porta social e de serviço… A elite da sociedade brasileira colonial não tinha o trabalho por hábito ou valor. Muitos seguem pensando assim ainda hoje e sobem alto na hierarquia social e política…
E de onde vêm esses valores? Temos valores muito antigos e profundos, arraigados, civilizatórios mesmo. São os que nos constituem na nossa essência, como a religião, a lei, a filosofia. E temos valores transitórios, hegemônicos em determinados períodos históricos em função da política, economia, produção e consumo de alimentos e bens materiais e imateriais, suas formas de organização social. Também temos as questões regionais, com diferenciação de tônus em cada um desses valores.
Uma boa maneira de reconhecer isso é olhar para sociedades que nasceram com princípios diferentes dos nossos. Por exemplo, você poderia imaginar uma comunidade indígena do amazonas demarcando terras, levantando cercas e propriedades, registrando-as em livros, levantando penitenciárias, criando um universo em torno de segurança patrimonial? Pois é o que fazemos, nossas cidades são resultado desse esforço hoje quase sobre-humano de repartição, controle e proteção de bens e pessoas. Grande parte do PIB vem dessa economia de proteger a nós e nossos bens de nós mesmos. Louco, né?
Os Yanomami, nos conta Davi Kopenawa, nos chamam de “o povo da mercadoria”. E somos, damos valor comercial a tudo. Até para filhos e amor, não é raro associar termos como investimento e mercado. Essa ideologia, da valorização do indivíduo em função dos bens que acumula material e afetivamente leva à necessidade da criação de ilhas dos iguais para que ali se sintam seguros e distinguidos em relação aos que estão do lado de fora.
Esses valores não são uma exclusividade brasileira, hoje são comuns ao ocidente e ao oriente, mas na maioria dos países ditos civilizados a delimitação dessas “bolhas” não chega a formar ilhas físicas como as nossas. As cidades estão igualmente infestadas de carros, são poluídas, têm trabalhadores alienados, há riqueza e pobreza demais, sofrimento psíquico em abundância e outras características que não nos deixam perceber grandes diferenças entre esses mundos a não ser nas formas de controle social, mais ou menos explicitas em cada país. Só que enquanto as cidades mundo a fora conseguem manter um certo grau de equilíbrio entre o individual e o coletivo, até com agradáveis exemplos de convivência social em espaços públicos, no Brasil atingimos um grau indescritível de paroxismo. Uma das sociedades mais desiguais do mundo só poderia ter cidades formada por ilhas de desiguais.
Usar a cidade como espelho, ter consciência das causas e consequências da nossa forma de viver e usar o espaço urbano, pode nos ajudar a encontrar caminhos melhores, mais saudáveis para nosso futuro. A saída não está nas armas, nas cercas, nas ilhas. Pelo contrário, é preciso que encontremos maneiras de modificar a ideologia que nos aprisionou na cidade da insegurança, medo, fome, epidemias, poluição, em um planeta que não para de esquentar de forma terminal.
(Texto originalmente publicado aqui em 12 de agosto de 2022)