Na coluna de hoje, e na próxima, vou reproduzir o depoimento que fiz na Conferência de Avaliação do Plano Diretor de Porto Alegre, realizada no Salão de Atos da PUCRS, no dia 7 de março. Foi uma oportunidade de levar a um debate ao vivo o que tenho escrito nesse espaço sobre a minha visão das cidades em geral e de Porto Alegre em particular. Muitos anos atrás, participei do grupo que definiu as Áreas e Lugares de Interesse Cultural de Porto Alegre, portanto era também uma responsabilidade contribuir com a discussão atual.
Fui, e continuo sendo, crítico ao Plano Diretor vigente. E assim comecei meu pronunciamento:
Para deixar claro meu posicionamento, trago o parágrafo final do pronunciamento que fiz no seminário sobre Identidade Cultural de Porto Alegre, em 2003, na Câmara de Vereadores e posteriormente publicado no site Vitruvius :
“O último plano (o de 1999) é o mais nefasto, porque é o mais radical e não se pauta na leitura da cidade real. Ele é homogeneizador e idealista. Ele é tão radicalmente transformador que se preocupou em criar mecanismos de salvaguardas para algumas áreas e lugares de interesse cultural, mas nem aí foi feliz, porque, mais uma vez jogou a regulamentação destas áreas para depois… depois de ter sido dada a oportunidade de serem corrompidas.”
Feitas essas confissões, fico mais à vontade para expressar as minhas ideias sobre como eu vejo nossa cidade e seu destino. Sim, porque é disso que trata um plano diretor: projetar o destino da cidade. E, nesse sentido, eu só vejo um bom caminho para Porto Alegre enquanto cidade se houver uma profunda mudança ideológica que a reabilite em termos sociais, culturais e ambientais. É preciso virar a chave, ABANDONAR o viés da cidade para o automóvel para PLANEJAR a cidade pedestre, cidadã. É isso que muitas cidades estão fazendo mundo a fora.
Mas de que cidade estamos falando?
O que define a cidade contemporânea?
Certamente não é a de um agrupamento humano cercado por uma área rural, com limites bem definidos, onde acontecem atividades culturais, comerciais e industriais. Isso praticamente não existe mais no mundo. Essa foi a cidade histórica. Hoje, as atividades humanas se espalham em manchas sem forma pelo território do planeta. A cidade contemporânea passou a ser uma abstração simbólica e cultural. E se o seu Plano Diretor não a entender assim, só vai disciplinar seu território e não a constituir como cidade. E território, no sentido que estou falando aqui, significa o não-lugar, a indiferenciação, a ausência de valores de identidade. É a periferia que demanda GPS para nos localizarmos.
O motorista de Uber, e por consequência a maioria de nós, raramente sabe onde está se não olhar para o visor do celular. É ali que aprendemos que estamos no bairro Partenon, na cidade de Porto Alegre. E quem se importa, não é mesmo? Hoje é muito raro, em nossa comunicação diária, dizermos onde estamos. Estamos identificados pelo GPS e isso nos basta. E esse processo ainda é inicial, vai se acentuar.
Ainda assim, não temos dúvida em dizer que a cidade existe. Eu mesmo digo que nasci numa, nessa Porto Alegre. Mas, então, o que nos permite definir e reconhecer a cidade contemporânea enquanto cidade em seu sentido histórico? E até quando?
Não tenho dúvida que dois são os aspectos principais e essenciais para se reconhecer uma cidade: sociedade e cultura. Uma montadora como a GM às margens da Free Way (BR 290) abriga milhares de pessoas, muitas empresas, refeitórios e algum comércio, mas ninguém a considera uma cidade.
A cidade para ser cidade depende das relações sociais que a constituem e de símbolos que a expressem e permitam o reconhecimento por parte dos seus cidadãos. Eu me reconheço porto-alegrense por causa do Parque da Redenção, do Gasômetro, da Praça da Alfândega, do Guaíba, dos morros e assim por diante. Se cito com certa facilidade símbolos que identificam Porto Alegre em seu aspecto morfológico, tenho dificuldades quanto à cidadania. Vejo uma cidade formada por cidadãos de várias classes que não partilham o mesmo espaço público. Uma cidade dividida, formada por ilhas de grupos sociais que recorrem a cercas e segurança privada para se isolarem uns dos outros.
E não poderia ser diferente. É característica nacional. A história do Brasil criou uma sociedade cindida entre povos originários, negros, brancos, pobres e ricos e até hoje essas partes são mantidas distanciadas umas das outras. O jornalista Guga Chacra tuitou assim na última tragédia de deslizamento de morros em São Paulo:
“Por que nas últimas décadas não construíram casas populares no litoral norte? Por que não há hospitais? Por que o transporte público é precário? Por que não há escolas? Por que não há posto de bombeiros em todas as praias? Por que não havia sirene?”
Ora, a região é dividida pela BR-101; de um lado moram os veranistas em condomínios fechados com todo conforto e segurança, do outro, os que servem a essas pessoas e vivem em áreas de risco. São esses os que morrem nos desastres. Vivem no que chamamos de periferia, que é um termo para definir a não cidade, ou o que estou chamando de território. A resposta à pergunta do Guga apareceu na Folha de S.Paulo há poucos dias: não deixaram que os dois lados se juntassem numa mesma vizinhança, pessoas influentes pediram e a Caixa Econômica vetou, no mesmo dia em que foi protocolado, a solicitação de financiamento de 400 casas populares do lado rico e seguro da estrada.
Continua na próxima coluna.