Você já deve ter visto cenas parecidas. Chegam os tratores, com a polícia, para cumprir a ordem judicial de demolição de casas construídas ilegalmente em áreas de risco. Junto com eles vem também a imprensa, porque o drama das famílias que se desesperam ao verem a possibilidade de perderem suas casas é matéria interessante para qualquer mídia. Casos assim ilustram tanto o grave déficit habitacional que temos no Brasil, como a dificuldade de remover as pessoas que moram em áreas de risco.
Na coluna da semana passada, descrevi algumas medidas de custo relativamente baixo que podem reduzir os impactos dos eventos extremos nas cidades. A ênfase foi em chuvas torrenciais e suas consequências, principalmente inundações e alagamentos.
Essas medidas, no entanto, não protegem as populações que vivem em áreas de risco, estimadas no Brasil em cerca de 8,9 milhões de pessoas. Devemos lembrar que as estimativas que temos sobre as áreas de risco refletem a condição atual ou, mais especificamente, as condições que predominavam antes das mudanças climáticas começarem a acentuar os eventos extremos. São, portanto, números conservadores.
Ainda que haja muitas exceções, uma parte considerável das pessoas que vivem em áreas de risco são habitantes de favelas. Estima-se que 16,6 milhões de pessoas (8% da população brasileira) vivam em favelas e comunidades urbanas (termos formalmente utilizados pelo IBGE no último censo demográfico). Enquanto cerca de 3-4% da população brasileira mora em áreas de risco (os 8,9 milhões), a proporção sobe para quase 20% em favelas (algo em torno de 3,5 milhões de pessoas).
Se quisermos evitar mais perdas de vidas e bens materiais devido aos eventos climáticos extremos, as casas e as instalações construídas (e continuam sendo) em áreas de risco devem ser removidas. E esta remoção representa um alto custo econômico e social. Embora, como mostram os números acima, não sejam apenas os favelados que vivem em áreas de risco, eles representam o caso mais difícil, pois muitas favelas tendem a se localizar próximo a áreas valorizadas e apresentam alta densidade populacional, com pessoas que não têm recursos para se realocar.
Por isso, vou focar mais na questão dos moradores de favelas, que serve de referência para os demais casos.
Há duas situações nas áreas urbanas que abrangem a maioria das áreas de risco: (1) as áreas sujeitas a inundações e alagamentos, e (2) as áreas sujeitas a deslizamentos (cuja denominação técnica é movimento de massa – se referindo a todos os movimentos de descida de solo e rochas sob efeito da gravidade, geralmente potencializado pela ação da água).
Se 20% das favelas se encontram em áreas de risco (que, repetindo, se trata de um número conservador), será preciso um significativo esforço de reurbanização dessas comunidades, para que as pessoas vivam em mais segurança.
Há pelo menos duas formas de fazê-lo. São viáveis, ainda que envolvam uso significativo de recursos públicos. São ilustradas pelo Projeto Favela-Bairro, do Rio de Janeiro, e pelo Projeto Cingapura, de São Paulo.
Projeto Favela-Bairro – RJ
Esse projeto de urbanização, ou o que restou dele, é gerido pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e se denomina formalmente Programa de Urbanização de Assentamentos Populares do Rio de Janeiro (PROAP). Foi idealizado em 1995 pelo arquiteto Luiz Paulo Conde, que era Secretário de Planejamento na gestão de César Maia (Conde depois chegou a ser prefeito do Rio e vice-governador do estado).
O objetivo do projeto, ou programa, era implantar infraestrutura urbana, serviços, equipamentos públicos e políticas sociais em comunidades do Rio de Janeiro. Em resumo, seu objetivo era integrar as favelas à cidade.
O programa, que foi em parte financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD), incluía o cadastramento dos moradores, reformas de residências consideradas precárias, pavimentação de ruas, redes de esgoto e de drenagem, contenção de encostas, iluminação pública, áreas de lazer e de convivência, creches, posto de saúdes e outras benfeitorias.
Inicialmente, foi muito bem-sucedido. Inclusive considerado pelo BIRD como um projeto-modelo de políticas públicas no combate à pobreza e à miséria, indicado pela ONU no Relatório Mundial das Cidades, de 2006/07 como um exemplo a ser seguido por outros países e ainda escolhido como um dos melhores projetos do mundo apresentados na Expo 2000, sediada em Hanôver.
O Favela-Bairro foi desenvolvido de forma mais intensa até 2007, quando Luiz Paulo Conde era vice-governador. Daí para a frente foi decaindo. Em 2010 foi transformado no programa Morar Carioca pelo prefeito Eduardo Paes (políticos não gostam de manter denominações que lembrem seus antecessores) e depois foi sendo progressivamente abandonado, embora de tempos em tempos haja promessa de retomá-lo.
Eu morei e trabalhei no Rio de Janeiro durante a época de sua implantação e pude testemunhar o quanto beneficiou várias comunidades. A pergunta que inevitavelmente surge é: por que abandonaram um dos melhores programas de urbanização do mundo? Talvez o aumento do poder de traficantes e milicianos tenha dificultado um pouco sua continuidade, mas, a meu ver, as razões são políticas mesmo. Tanto por essa mania dos governantes de se recusarem a continuar os programas de seus antecessores, como porque talvez tenham encontrado outras obras que teriam mais visibilidade (no caso do Rio, as Olimpíadas, por exemplo).
O projeto Favela-Bairro não deveria ser retomado apenas no Rio de Janeiro, mas expandido para o Brasil inteiro. No entanto, a nova realidade climática e outros problemas urbanos como a superpopulação, requerem algumas modificações.
Aqui entra o próximo exemplo.
Projeto Cingapura – SP
O Projeto Cingapura foi implantado na cidade de São Paulo na gestão do controverso Paulo Maluf, inspirado em um projeto de habitação popular de Singapura, a cidade-estado do sudeste da Ásia.
O projeto asiático tinha como objetivo a construção de moradias dignas que fossem capazes de atender o grande número de pessoas desabrigadas que viviam em condições insalubres no começo da década de 1960.
O projeto envolvia o cadastramento dos moradores, que eram colocados em acampamentos provisórios enquanto eram construídos edifícios com até 40 andares (Singapura tem severas limitações de espaço, de forma que a verticalidade é inevitável). Os prédios eram construídos próximo de onde as pessoas moravam e incluíam uma série de serviços do comércio, escolas e atendimento público. Assim as pessoas não eram deslocadas de onde estavam acostumadas a morar, e ganhavam com moradias melhores e serviços adequados. Entre os edifícios foram ainda criadas áreas de lazer, com parques, ciclovias e outras facilidades. Ao aderirem ao programa, os moradores eram obrigados a se associar ao sistema previdenciário do estado e pagar pelos imóveis, de acordo com sua renda, com financiamento subsidiado pelo governo.
O projeto deu tão certo que, na década de 1990, já havia 740 mil apartamentos construídos e a iniciativa foi aprimorada. O governo passou a reformar as unidades mais antigas e até mesmo oferecer moradias novas para quem se dispusesse a pagar. Estimativas indicam que, atualmente, cerca de 80% das habitações dos moradores de Singapura sejam financiadas pelo estado.
Mas em São Paulo as coisas foram diferentes. As intenções iniciais eram muito boas. O projeto não se limitaria à substituição dos barracos por prédios de apartamentos, mas também implantaria infraestrutura e serviços de saneamento básico. Também financiado pelo BIRD, seria uma excelente maneira de transformar favelas em bairros e integrá-los à cidade.
No entanto, outros interesses, políticos e econômicos, condenaram o projeto ao fracasso. Para começar, as construções (prédios de cinco andares – os de Singapura tem mais de vinte – ainda que isso possa de fato variar conforme as características da cidade) foram realizadas em lugares distantes dos locais originais, ou seja, serviram para deslocar os moradores para longe das áreas centrais.
Além disso, foram construídos próximos a vias de grande movimento (para dar maior visibilidade política), em áreas áridas, ou seja, sem comércio, sem escolas, sem outros serviços públicos e áreas de lazer. No final, durante a gestão Maluf, 15 mil pessoas foram removidas das favelas, quatro vezes mais do que o número que recebeu as novas habitações.
Mais um bom programa desperdiçado.
A Melhor Solução
A melhor forma de resolver o problema do déficit habitacional no Brasil e remover as pessoas que moram em área de risco e precisam de financiamento governamental é combinar aspectos do projeto Favela-Bairro com o projeto Cingapura.
Já mencionei na coluna da semana passada que os prédios mais eficientes do ponto de vista ambiental são os que têm entre 6 e 10 andares, dispostos em conjuntos com áreas verdes no seu interior ou entre eles. Assim, o projeto ideal para urbanização das favelas é mapear as áreas de risco, que devem ser transformadas em parques ou reservas naturais (incluindo a proteção contra deslizamentos e a absorção da água de inundações e alagamentos), demolir a maioria das casas, e construir prédios de 6 a 10 andares que irão abrigar os moradores cadastrados.
Diferentemente do projeto Cingapura de São Paulo (mas da mesma forma que o projeto original de Singapura), os prédios devem ser construídos na mesma área onde ficava a favela (ou comunidade) anterior. E, assim como no projeto Favela-Bairro (e, novamente, como em Singapura), o plano deve incluir a disponibilidade de serviços comerciais e públicos, assim como áreas de lazer.
Não vai ser fácil
Descrito da maneira como fiz acima, parece uma solução fácil. Como nos casos anteriores, há inclusive possibilidade de financiamento por organismos internacionais, como o BIRD. No entanto, a realidade pode ser bem diferente.
Para começar, as favelas têm “donos”. Não apenas traficantes e milicianos que, além da venda de drogas, também exploram (principalmente estes últimos) outros “serviços” que as comunidades não têm outra alternativa senão utilizar, mas também pelo fato de que muitas pessoas nas favelas moram em casas alugadas. Ou seja, há pessoas que detém várias “propriedades” e ganham muito dinheiro com isso. Mesmo estabelecimentos comerciais pagam aluguel ou taxas de proteção e “licenciamento” aos tais “donos”. Tudo completamente ilegal e à margem da atuação do estado que, evidentemente, está ciente deste tipo de coisas. O fato é que muitos políticos e governantes tiram proveito desta situação, seja por controle de votos, seja por também estarem envolvidos nos ganhos econômicos. Haverá, portanto, resistência por parte de grupos poderosos.
Existem ainda entraves burocráticos, como a dificuldade de se fazer o cadastramento correto dos moradores e a avaliação de sua capacidade financeira. Além disso, é essencial complementar as construções com a disponibilização de serviços e demais componentes essenciais para a vida da comunidade. O próprio projeto Minha Casa Minha Vida, do governo atual, apesar de apresentar vários dos problemas relatados anteriormente (além da péssima qualidade da maior parte dos imóveis entregues), é uma evidência de que projetos habitacionais são factíveis.
Será complicado executar de maneira correta um projeto nos moldes que estou propondo, ainda mais com a magnitude que se faz necessária. Mas isto não quer dizer que não possa ser feito. As perdas de vidas e bens nas tragédias climáticas serão ainda maiores. E vidas não podem ser recuperadas.
Observação final: para vídeos e textos adicionais, confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Agência Brasil
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