Se alguém tem dúvida de que somos constituídos como sujeitos pela memória que temos de nós mesmos e do que guardamos de nossas relações com os outros, pense na doença Alzheimer. Ainda que tecnicamente esteja vivo, o paciente não mais interage socialmente porque não tem memória de si mesmo e de sua relação com os demais. As pessoas e o mundo perderam, para ele, o significado. Ontem, o hoje e o amanhã deixam de existir. Uma impossibilidade de viver com autonomia, uma morte prematura.
A vida em sociedade não é muito diferente. Ela existe enquanto se reconhece como uma comunidade ou nação quando registra seu passado, vive seu presente e projeta seu futuro. E o faz com suas celebrações, festas, comemorações de suas tristezas e alegrias, suas vitórias e derrotas. Nesse caminho guarda sinais, documentos ou monumentos que ajudam a memória a lembrar. Sociedades que não cuidam da sua memória, navegam inconscientes, sem domínio e controle de seu destino, vagando ao sabor do mando ou desmando de líderes que dela se ocupam por interesse. Infelizmente, a maioria das cidades brasileiras vivem assim.
As cidades são os repositórios das memórias dos humanos. Não são museus estáticos, se modificam o tempo todo, mas acumulam registros. Guardam diferentes tempos em camadas que são justapostas harmonicamente ou superpostas, as novas substituindo as anteriores. As cidades sadias, boas-de-se-viver, são aquelas que têm a sabedoria para acomodar a novidade — o futuro — ao passado. Ela já não é igual ao que foi, mas também não é diferente. Cidades assim trazem segurança psíquica para seus cidadãos na forma de estabilidade. Até para lutar para que as coisas mudem é importante ter o referencial da permanência. As que não passam de aglomerações de pessoas, no limite, poderiam ser comparadas aos acampamentos erigidos para refugiados ou desabrigados em situações de emergência. A provisoriedade ali é angustiante.
O mundo está cheio de bons exemplos de cidades que guardam com cuidado sua memória. Basta pensar em Roma (foto da capa), cidade milenar, para entender o que estou falando. Uma tarefa quase impossível foi implantar sua rede de metrô. A cada metro de escavação, uma descoberta arqueológica fazia as obras pararem. E paravam! Essas descobertas fazem com que a história contada seja recontada e que a visão que temos de nós mesmos seja ampliada. David Graeber e David Wengrow, por exemplo, lançaram o livro O despertar de tudo – Uma nova história da humanidade, a partir de recentes descobertas arqueológicas, e sua narrativa abala crenças sedimentadas quanto a nossa incapacidade de viver em harmonia com nós mesmos e com a natureza.
Por aqui, em nosso país, não costumamos valorizar a memória, não gostamos de guardar registros. Dá trabalho, custa caro… para quê? é pergunta comum. Isso não explica a permanente crise civilizatória que vivemos, sempre à beira da barbárie, duvidando da ciência, da cultura, da arte, da educação e até da medicina, mas tem sua contribuição. Experiências anteriores não são críveis, repetimos experiências sofridas na maior inocência ou ignorância. Essa é a história do Brasil: a violação renitente de princípios civilizatórios, aqueles necessários para transformar acampamentos em cidades. Não gostamos de cuidar da memória, ela é trocada facilmente por alguns reais.
O assunto da memória vale por si, mas a verdade é que lembrei dele porque um amigo me alertou: vão demolir a casa do escritor Dyonélio Machado, na rua Souza Doca 131. É um hábito da cidade, há pouco foi abaixo a casa de Caio Fernando Abreu. O endereço me fulminou. Nessa quadra eu jogava bola no meio da rua, só parávamos quando um carro queria passar. Sim, eles eram raros. Curioso, fui ver que casa era essa, nunca tinha ouvido falar que Dyonélio tinha morado na rua da minha infância. E não é que descubro que se trata da casa da dona Olga, mãe do meu amigo Fernando? Eu frequentava a casa quase que diariamente. Cenas da minha infância, da minha turma, voltaram à memória instantaneamente. Onde andam esses amigos, onde ando eu? Uma série de lembranças e imagens trazem à tona uma parte de mim que, adormecida, sem dúvida me acompanha. Acordá-la, ainda que brevemente, não me deixa esquecer: tenho uma origem, passei por ali e hoje estou aqui. Aliás, não muito longe fisicamente.
A materialidade de registros do passado torna as coisas reais. Precisamos delas para separar a imaginação, o sonho, da realidade. Um pequeno fragmento que seja encontrado por arqueólogos, devolve o passado ao presente. Podemos saber quem fomos, o que fazíamos. As referências de locais onde viveram, trabalharam e frequentaram os personagens importantes de nossa história, sejam eles escritores, artistas, cientistas ou políticos é importante para formação da nossa identidade. Lisboa, pelo que me contaram, está mantendo artificialmente, com subsídios municipais, cafés, livrarias e outros locais que o mercado não tem interesse em sustentar. Por que será?