Este feriado foi especial, eu fui convidada para palestrar na Arena 8 do World Creative Day, o maior Festival colaborativo de criatividade do mundo que acontece em São Paulo e mais 128 cidades pelo mundo.
A minha palestra de 30 minutos foi sobre Afrofuturos a partir de fundamentos ancestrais. Apesar do horário (13h40 em um feriado) fiquei feliz com uma plateia cheia de pessoas interessadas a abrirem suas perspectivas sobre uma visão de futuro que parte de outra premissa que não a eurocentrada e tecnicista.
Quando falamos de futuro e tecnologia, a partir do pensamento eurocentrado, o foco é a tecnologia sempre em estado bélico com a humanidade. Mas isto é outro papo. A perspectiva do afrofuturismo nasce de um movimento artístico (ou seja, a capacidade de criar e imaginar, além da realidade dada, cenários futuros em que o protagonismo negro cria avanços, tecnologias e outras perspectivas sociais e humanas).
O primeiro fundamento ancestral utilizado em Afrofuturos é a capacidade de sonhar com além da realidade violenta e de subalternização das pessoas pretas. É reimaginá-las protagonizando suas vidas. E se você pode imaginar, você pode realizar. É o futuro como um design de novas possibilidades humanas.
Esta vertente vem crescendo de forma silenciosa e com várias iniciativas pós Pantera Negras vêm sendo sinalizadas, trazendo indícios de uma Wakanda imaginativa: a sereia, os nobres negros de Brigeston, o boato do 007 e a produção para o Netflix de uma série sobre mulheres negras rainhas na história, que irá estrear dia 10.05.
A colunista Kelly Miyashiro publicou há 3 dias em sua coluna da Veja um resgate sobre a polêmica:
“A rainha Cleópatra será a primeira realeza a ter sua história contada na série documental da Netflix sobre rainhas africanas produzida por Jada Pinkett Smith. Mistura de entrevistas com dramatizações, a produção estreia só em 10 de maio, mas já sofre retaliações e ataques racistas após a divulgação de que a egípcia é interpretada pela atriz negra Adele James (foto da capa). Até políticos do Egito estão achando um absurdo a escolha da atriz para fazer a figura já representada no passado por atrizes brancas como Elizabeth Taylor e ameaçam banir a obra do país.
Em um artigo publicado na Variety, a diretora da produção, Tina Gharavi, rebateu a polêmica defendendo que Rainha Cleópatra tende a ser mais fiel do que outras obras já feitas. “Lembro-me de quando criança ver Elizabeth Taylor interpretar Cleópatra. Fiquei cativada, mesmo assim, senti que a imagem não estava certa. A pele dela era realmente tão branca? Com esta nova produção, eu poderia encontrar as respostas sobre a herança de Cleópatra e libertá-la do estrangulamento que Hollywood impôs sobre sua imagem?”, reflete a diretora.
Nascida no Irã, Tina ressalta que as origens de Cleópatra deixam claro que as chances de ela ter sido uma mulher branca são poucas e rechaça que exista a polêmica agora, já que a escolha de atrizes brancas nunca fora questionada. “Cleópatra foi atribuída em algum momento aos gregos, macedônios e persas. Os fatos conhecidos são que sua família greco-macedônia — da linhagem ptolomaica — se casou com a dinastia selêucida da Ásia Ocidental e esteve no Egito por 300 anos. Cleópatra estava a oito gerações desses ancestrais ptolomaicos, tornando a chance de ela ser branca um tanto improvável. Depois de 300 anos, com certeza, podemos dizer com segurança que Cleópatra era egípcia. Ela não era mais grega ou macedônia do que Rita Wilson ou Jennifer Aniston”, ironiza, citando a escalação de atrizes como Theda Bara a Monica Bellucci — e até a disputa entre Angelina Jolie e Gal Gadot — para interpretá-la como errôneas.
Um advogado egípcio chegou a entrar com um processo acusando Rainha Cleópatra de violar as leis de mídia e tentar “apagar a identidade egípcia”, enquanto um arqueólogo fez comentários insistentes de que Cleópatra tinha “pele clara, não negra”. “Por que algumas pessoas precisam que Cleópatra seja branca? Sua proximidade com a branquitude parece dar-lhe valor, e para alguns egípcios parece realmente importar. Depois de muita espera e inúmeras audições, encontramos em Adele James uma atriz que poderia transmitir não apenas a beleza de Cleópatra, mas também sua força. O que os historiadores podem confirmar é que é mais provável que Cleópatra se parecesse com Adele do que com Elisabeth Taylor…
A série da HBO Rome retratou uma das mulheres mais inteligentes, sofisticadas e poderosas do mundo como uma viciada em drogas desprezível e dissipada, mas o Egito não parecia se importar. Onde estava a indignação então? Mas retratá-la como negra? Bem…”.
A coluna está bem interessante e recomendo, pois, além de tudo Kelly é uma brasileira miscigenada preta nipônica, e não é apenas alguém sem lugar de fala escrevendo sobre a polêmica gerada por miscigenação. Para além do racismo que é o efeito este caso ilustra a castração do imaginário ou a tentativa de evitar o questionamento de uma branquitude que está entranhado nas produções culturais de massa que constroem imagem e significados culturais.
A diretora Tina ainda alfineta os egípcios por se sentirem ofendidos após ela pedir que eles se enxerguem como africanos. Sim eles estão no continente africano, e fazem parte de uma África diversa em seu colorismo de gradações de tons de peles, mas com um DNA negro em comum.
Em 2009, foi divulgado um estudo arqueológico austríaco que aponta que a rainha egípcia Cleópatra era, em parte, africana, de acordo com uma equipe de pesquisadores do Instituto Arqueológico Austríaco. A conclusão foi tirada após a identificação do esqueleto da irmã mais nova de Cleópatra, a princesa Arsinoe, encontrado em uma tumba de mais de 2 mil anos em Éfeso, na Turquia.
As evidências obtidas pelo estudo das dimensões do crânio de Arsinoe indicam que ela tem algumas características de brancos europeus, de antigos egípcios e africanos negros, indicando que Cleópatra provavelmente também era de origem étnica mista. A mãe de Arsinoe seria de origem africana. Há muito tempo os especialistas debatiam se Cleópatra era norte-africana, grega ou macedônia.
O fato é que a mulher miscigenada com origem africana continua gerando polemica e espaço para que a imaginação humana possa se questionar sobre suas construções simbólicas, suas ancestralidades e possibilidade de futuros enquanto humanos.
Eu vou assistir? Quem vai comigo?