Millie Bobby Brown, atriz americana que interpretou a personagem “Eleven” no seriado Stranger Things, gravou um vídeo em suas redes sociais na última semana, questionando a liberdade e inadequação com as quais pessoas mencionam e delegam sobre corpos, aparências, mudanças e escolhas das atrizes que iniciam muito cedo na indústria cinematográfica. Na postagem, ela afirma que, por ter iniciado ainda criança frente aos olhos do grande público, aos 10 anos de idade, foi vendo seu corpo ser alvo de comentários e críticas à medida que ela crescia e ele se transformava, um corpo sob o escrutínio de uma implacável audiência que, não surpreendente, sentiu-se confortável para questionar e condenar a forma pela qual ela foi amadurecendo e seu corpo se modificando. A frase que mais me impactou ao assistir a esse vídeo foi algo do tipo “eu cresci diante das câmeras e as pessoas parecem não ter sido capazes de crescer comigo. Esperavam que eu tivesse permanecido congelada no tempo”.
Esse congelamento que esperamos, o desejo de que o tempo não passe para nossos ídolos ou personagens que guardamos em nossa memória afetiva. O tempo não passar para eles ajuda a não enxergarmos que passa para nós. Já falei aqui diversas vezes sobre como me intriga o tempo e suas estratégias silenciosas de passar quase despercebido aos nossos olhos. Olhamo-nos no espelho todos os dias e negamos que ele passa. Por isso – além de tantas outras razões – ter filhos é tão desafiador, porque enxergamos através deles o tempo passando rápido e implacável. Envelhecemos antes que possamos ser capazes de sentir que estamos preparados para isso. Até porque nunca estamos. Diante disso, também a cultura dá seus jeitos de colaborar com essa negação coletiva. Há sempre reações também coletivas quando lemos posts do tipo: quem nasceu em 1990 agora já tem 35 anos, ou então saber como estão hoje atores ou atrizes mirins que “sumiram”.
A passagem do tempo, materializada em personagens de nossas infâncias/juventudes, é um golpe narcísico que se apresenta. Eu gosto muito do seriado Friends e sei que parte disso é ver aqueles amigos sempre jovens, sempre iguais, os episódios que já sei quase de cor. Um lugar de conforto, onde o tempo não passa e eles continuam lá, iguais. Por vezes, assistindo, ainda custo a aceitar que o ator Mathew Perry até já morreu. Eu quero continuar vendo aqueles amigos daquele jeito, mesmo que por alguns momentos. Mais uma vez, o equilíbrio entre refúgio e alienação se faz presente e necessário. Claro que abordo aqui a questão coletiva e referente ao envelhecimento no geral, mas certamente e não menos importante é o relato da atriz Millei quando fala sobre o corpo da mulher, que sofre ainda mais julgamentos do que o de um homem. A sexualidade de uma atriz que foi se tornando mulher aos olhos do público não dá (ou não deveria dar) o direito de qualquer pessoa julgar, opinar ou condenar a forma como esse corpo se movimenta ou se apresenta.
Aliás, por falar em corpo, ainda não assisti, apesar da enorme curiosidade, o novo documentário da cantora Anitta. “Larissa: o outro lado de Anitta”, estreou na última semana e a promessa é a de ver um outro lado da personalidade que a cantora não mostra, uma mulher tímida, reservada, em oposição à persona sensual, profissional intensa e determinada que ela demonstra nas mídias e em seus shows. Minha intriga com isso é, além do golpe de marketing, a capacidade real disso. Larissa escolheu o nome artístico de Anitta a partir da série então sucesso da rede Globo “Presença de Anita”, uma versão abrasileirada de Lolita, com o perdão do reducionismo da obra de Vladimir Nabokov. Fato é que essa história encontra eco no vídeo de Millie Bobby Brown. Esse apelo à sedução de uma jovem menina que vai ganhando atributos de mulher e as fantasias que isso desperta tanto em homens como em outras mulheres.
Cada um, por vias singulares, busca a juventude, a vitória sobre o tempo, seja estando ao lado desse corpo jovem que atestaria a virilidade do outro, seja pela busca desenfreada por voltar a esse mesmo corpo, contrariando toda lógica do tempo e da biologia. Fato é que eu acho no mínimo estranho naturalizar esse “lado B” das pessoas. Não existem lados. Existem arestas, desdobramentos, facetas múltiplas. Sinto uma curiosidade genuína em compreender o quanto essa personalidade Larissa de Anitta é de fato oculta ou o quanto Anitta e Larissa são a mesma multiplicidade de uma mulher inegavelmente forte, inteligente e estratégica que usa desse recurso para gerar ainda mais engajamento e lucro. Minha questão é o impacto disso chegar ao grande público com essa ideia de separação de “personalidades”. Ouve-se muito no consultório a frase que começa por “tem um lado meu que….”. Sim, somos personalidades múltiplas e diversas, mas, ainda assim, salvo em casos mais graves de desfragmentação ou psicoses mais severas, ao contrário da cantora Anitta, não temos mais de um nome (por mais que quiséssemos). Nossos nomes deslizam, amam e odeiam, comportam-se de jeitos nem sempre coerentes, mas a Pessoa Física que paga a conta é sempre a mesma.
Uma conta que não é exata para todos os lados de uma mesma moeda que é ser gente.
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Foto da Capa: Netflix / Divulgação