A conclusão é triste: não há mais tempo de seguir todas as recomendações. A condição de leitora voraz, infelizmente, ficou soterrada em anos de hiperespecialização e trabalho. Fica uma lembrança de quando cursava certa disciplina da comunicação e um professor dizia “o especialista é um chato, porque só sabe falar de um assunto”. Não é justo, mas, em parte, fechei com esta ideia. Desde então, um dos meus piores pesadelos é o de só saber falar, por exemplo, de psicanálise.
Procuro que não seja assim, sempre gosto de diversidade. Arte, política, ciência socialmente engajada etc. Ter amigues de outras áreas ajuda, mas, como a vida não é fácil, passei a entender que o generalista podia ser apenas um raso. Um enrolão passador de conversa, evanescente como poça d’água de chuva de verão. Assim, com o privilégio deste pequeno dilema burguês na pauta mental, um livro ou um filme sempre me salvaram da indecisão entre ser profunda ou uma surfista de assuntos. De mãos dadas com a curiosidade infantil a ideia sempre foi conhecer. No entanto, no possível, gosto de não me amargurar com as minhas velocidades que são poucas. Como quase toda brasileira, trabalho cerca de quarenta horas semanais. Entre clínica, escrita e outros projetos está também o tempo para a família – um tempo de partilha no qual o entretenimento consensuado nem sempre vai na direção dos meus desejos ou das últimas recomendações recebidas.
Em todo caso, percebo que, às vezes, não há salvação para quem não viu, não leu, não comentou ou não acompanhou. Outro dia vi uma esquete, uma espécie de umbral para o qual foi levada uma mulher negra que não gostava de Beyoncé. La quiero, este não seria o meu pecado. Contudo, mais do que a disputa por gostos e desgostos, às vezes tenho a impressão de que deve haver alguma outra reserva especial – uma ante sala anti vip do inferno – para aqueles que não assistiram, não leram, não entenderam a referência ou, pior, têm a coragem de perguntar do que se trata determinado filme ou série. Essa necessidade de estar “por dentro”, em dia e – para usar uma gíria velha – “na crista da onda” gera uma genuína angústia. Síndromes também são para consumir, então, essa angústia é traduzida, por vezes, como uma faceta da famosa síndrome FOMO [Fear of missing out]. Quer dizer, o desassossego atroz cujo pano de fundo é a ideia de estar perdendo algo interessante.
Uma variação do mesmo tema, mas talvez ainda mais angustiante, pode ser a necessidade de estar superinformado. É o famoso “você viu?” quase sempre acompanhado de uma nova tragédia. Aí, as redes sociais desempenham um papel talvez ainda mais proeminente, pois “você viu” está amiúde acompanhado da imperiosa necessidade de curtir, comentar e, para muitos, cancelar. As redes sociais regulam também o timing de nossa indignação que não costuma durar muito tempo, mas apenas o suficiente até que surja um novo acontecimento funesto para consumir. A preocupação, parece, não é exatamente o medo de perder alguma coisa, senão preencher esse check list infinito em um entretenimento vazio, sem profundidade e consequência. FOMO está na moda das novas psicopatologias, mas, afinal, o que estamos perdendo? Receio que não estamos exatamente bem-informados. Ainda assim, nos desumanizamos soterrados por informações das quais não nos apropriamos genuinamente.
Julieta Hernández (foto da capa) parece ser – tomara que não! – mais uma personagem desse engajamento ativista de ocasião. Mulher, palhaça, venezuelana e autodefinida como cicloviajante, a artista de 38 anos se encontrou com um de nossos produtos nacionais mais depurados – o feminicídio. Julieta não andava em busca de nenhum Romeu, não. Mesmo assim, se encontrou com uma morte trágica que não tinha nada a ver com amor, mas com o pior do patriarcado – aquele que ainda consegue enredar outras de nós como algozes, que faz com que não estendamos as mãos umas às outras, mas nos aniquilemos na sustentação dos que nos corroem como um câncer. Não quero entrar nos detalhes dessa morte abjeta e revoltante, até porque, eles estão servidos nesse grande banquete cibernético que não exige etiqueta à mesa. Falar sobre consumo e ativismo me interessa mais, porque, como mulheres, somos mais “roubáveis”, “estupráveis”, “matáveis” e, fica evidente, “esquecíveis”. Julieta, feliz sem Romeu, e sua bike queria apenas pedalar até chegar à sua terra mátria e à sua mãe. Quantas de nós terão que morrer até que isto seja verdadeiramente possível?
Julieta presente!
Foto da Capa: Reprodução de Rede Social