Após criticar o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), durante a campanha presidencial devido ao chamado Orçamento Secreto, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), decidiu, e mostrou ao longo de seu primeiro ano de governo, que o presidente da Casa é um aliado forte e privilegiado. Dono de um lote especialíssimo de cargos e indicações ao Executivo, ninguém imaginava que o alvo daquelas críticas seria tão bem auferido.
Lula resolveu que sua melhor estratégia seria não repetir erros de sua antecessora, Dilma Roussef, quando bancou rivalidade com o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e teve o desfecho conhecido. A péssima relação do governo Dilma com o então presidente da Câmara culminou no impeachment da presidente em 2016. Agora, na evidência de que Lira fortalece um grupo só seu na Câmara dos Deputados, Lula cede cada vez mais aos avanços dos pedidos e exigências vorazes do aliado por cargos e mais cargos.
Enquanto, na pós-eleição, a base de Lula, incluindo PT, PV e PC do B, as siglas da federação partidária que forma o governo, oficializava o apoio ao mandato de dois anos para Lira, recém saído da robustez de forte homem do Governo Bolsonaro, de quem fora aliado fiel, engavetando dezenas de pedidos de impeachment. Seu perfil, porém, é bastante pragmático. Assim que a eleição de Lula foi anunciada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o presidente da Câmara parabenizou o presidente eleito e disse que “a vontade da maioria jamais deverá ser contestada”, num claro distanciamento do discurso bolsonarista de questionar a segurança do sistema de votação brasileiro.
Segundo o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), seu partido decidiu apoiar a reeleição de Lira porque a sua vitória “já está praticamente garantida”. Dessa forma, o PT já procurava construir uma boa relação com o comando da Câmara e facilitar a futura aprovação de projetos de interesse do governo Lula.
“Nós precisamos governar agora. Não adianta a gente lançar um candidato contra um que já ganhou por uma marcação de posição”, reforçou à época Zarattini, prevendo o futuro quase imediato. Além da boa relação com Lira, Lula tenta garantir a governabilidade atraindo partidos de centro-direita para a base do governo, já que as siglas mais à esquerda não garantem maioria de votos no Congresso. O presidente está em negociação com União Brasil, MDB e PSD, um pendor à direita e centro-direita.
Zarattini lembra que o PT “não quer repetir” o que ocorreu na presidência de Eduardo Cunha. No comando da Casa, ele privilegiava a votação das chamadas “pautas-bomba”, que prejudicavam o governo com aumentos de gastos, e, por outro lado, dificultava o andamento de propostas de interesse da gestão Dilma. Depois, com a escalada da crise com a presidente e o PT, Cunha deu início ao processo de impeachment que derrubou a petista.
O próprio Lula reconhece que Dilma e seu partido erraram na forma como conduziram a relação com Eduardo Cunha. Em 2019, quando estava preso em Curitiba, Lula disse que o partido não deveria ter lançado o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) para disputar com o peemedebista. Segundo Lula, “havia já um antipetismo dentro da Câmara” e a melhor estratégia na época seria ter apoiado outro nome do PMDB (partido que passou a se chamar MDB em 2017).
Cunha venceu a disputa em primeiro turno, com 267 votos, contra apenas 136 do petista. “Eu fui alertar o PT que era humanamente impossível, matematicamente impossível, o PT disputar a presidência da Câmara em 2015. Fui numa reunião com vários deputados do PT, coloquei meus argumentos: ‘se vocês quiserem derrotar o Cunha, a única coisa que podem fazer é pegar alguém do PMDB e lançar como candidato para derrotar o Cunha'”.
Disputa por cargos na Câmara
O analista político Antônio Augusto de Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), também considera que seria muito “temerário” o PT tentar enfrentar Lira na disputa pelo comando da Casa. Na sua visão, pesa ainda no cálculo político a necessidade de uma boa relação com Lira para conseguir aprovar ainda neste ano uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que autorize um aumento dos gastos do governo no próximo ano, a chamada PEC da Transição. Previsão feita e realizada.
Na proposta, o presidente liberou R$ 198 bilhões de despesas acima do Teto de Gastos em 2023, mas teve o texto aprovado com agilidade na Câmara e no Senado. O próximo governo quer usar esses recursos para ampliar o valor do Auxílio Brasil, que voltou a se chamar Bolsa Família, além de destinar mais recursos para investimentos em obras e programas sociais, como o Farmácia Popular e o Minha Casa Minha Vida. Foram os caminhos iniciais do Governo petista, palmilhando sob a mão de Lira.
Outro ponto importante no apoio do PT a Lira, nota Queiroz, é a tentativa de garantir que postos-chave da Câmara sejam ocupados por aliados do governo ou, pelo menos, que não fiquem nas mãos de bolsonaristas, como o comando da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJ), órgão que analisa se as propostas em tramitação na Casa estão de acordo com os princípios constitucionais.
Como o PL elegeu 99 deputados, maior bancada da Casa, o partido tem preferência na escolha dos cargos. A bancada eleita, ressalta Queiroz, é uma mistura de deputados muito fiéis a Bolsonaro, que entraram recentemente no partido, e antigos congressistas da sigla, de perfil mais pragmático. No entanto, o PT, que elegeu a segunda maior bancada (68 deputados), pode formar um bloco maior com outros partidos dentro da Câmara e, assim, passar à frente do PL na distribuição dos cargos.
“Eu acho que tem muita chance de, através de um partido aliado, ao formar um bloco, (o PT) indicar o presidente da CCJ. Mas, de antemão, ao apoiar o Lira, vai ter a garantia de que ele, Lira, não vai entregar a CCJ a ninguém ligado a Bolsonaro. Pode até ser do PL, eventualmente, mas não pode ser dessa turma fundamentalista (mais fiel a Bolsonaro)”, acredita.
O futuro do “Orçamento Secreto”?
A federação liderada pelo PT e o PSB juntos somam 94 deputados. Além deles, outros dez partidos já formalizaram apoio à reeleição de Lira, o que garante maioria para reelegê-lo: União Brasil (59 deputados), PP (47), Republicanos (41), PDT (17), Podemos (12), PSC (6), Patriota (4), Solidariedade (4), Pros (3) e PTB (1). E também são esperados os apoios de PL (99) e PSD (42).
Na avaliação de Queiroz, Lira viabilizou sua reeleição ao gerenciar na Câmara a distribuição do chamado Orçamento Secreto (dezenas de bilhões de reais em emendas parlamentares que desde 2020 foram destinadas por deputados e senadores a suas bases eleitorais em operações pouco transparentes que têm dado margem a possíveis desvios).
Esse mecanismo, oficialmente chamado de emendas de relator, em referência ao parlamentar relator da lei orçamentária, transferiu para o Congresso um grande volume de recursos antes geridos pelos ministérios. A proposta de Orçamento para 2023, encaminhada ainda pelo governo Bolsonaro ao Congresso, prevê R$ 19 bilhões para essa despesa. Durante a campanha, Lula chamou o Orçamento Secreto de excrescência e criticou o excesso de poder nas mãos de Lira.
“O Bolsonaro é refém do Congresso Nacional. O Bolsonaro sequer cuida do orçamento. O orçamento quem cuida é o (Arthur) Lira, ele que libera verba, o ministro liga para ele, não liga para o presidente da República. Isso nunca aconteceu desde a proclamação da República”, disse o petista em entrevista ao Jornal Nacional em agosto.
Apesar disso, as emendas de relator não devem acabar no próximo governo. Mas, segundo Zarattini, a gestão Lula deseja dar “transparência total” a esses gastos. Além disso, disse o deputado, o governo quer definir quais serão as áreas prioritárias para uso dessas verbas.
“O governo é que deve dirigir para que tipo de uso vai o dinheiro. Lógico que o deputado vai influenciar também, dirigindo os recursos para os locais das suas bases, mas a partir de um plano onde o governo estabelece as suas prioridades”, defendeu Zarattini.
Queiroz, do Diap, ressalta que as emendas do relator não são uma despesa impositiva, ou seja, sua liberação pelo governo não é obrigatória. Por isso, ele avalia que Lula terá condição de fazer essas mudanças (dar transparência e definir áreas prioritárias). Para tornar essas despesas impositivas, Lira teria que conseguir alterar a Constituição, o que exige o apoio de ao menos três quintos dos deputados e senadores.
Na avaliação de Queiroz, isso não é viável no momento porque o tema é impopular na sociedade e o PT deve ter uma base suficientemente ampla para evitar uma alteração do tipo no texto constitucional.
Como era e como é? Ainda tudo para Lira
A nomeação de um aliado, Carlos Antônio Vieira, à presidência da Caixa Econômica Federal, ampliou o leque de influência do presidente da Câmara, Arthur Lira, sobre os postos do Executivo que tratam de interesses locais a agendas centrais do governo Lula. A verba sob a alçada de indicados por ele na administração federal ultrapassa R$ 25 bilhões. Para efeito de comparação, o orçamento secreto, usado para destinar verbas da União a parlamentares de forma desigual e sobre o qual o deputado tinha forte influência, previa R$ 19,4 bilhões neste ano, antes de sua extinção. Especialistas veem a ascendência sobre recursos e bancadas na Câmara como evidência de um protagonismo inédito de Lira, na comparação com antecessores no comando da Casa.
Além da Caixa, o deputado federal, em seu terceiro mandato, mantém apadrinhados no Ministério do Esporte, numa unidade regional da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), no comando da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Denocs), assim como Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e no Porto de Maceió.
O avanço sobre novos espaços, além da manutenção de apadrinhados nomeados nos governos de Michel Temer (MDB) e de Jair Bolsonaro (PL), vem ocorrendo a despeito de críticas feitas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na última campanha eleitoral, ao poder de seu neoaliado. À época, ao comentar uma proposta de adoção do semipresidencialismo, o petista acusou Lira de querer “tirar poder do presidente para que fique na Câmara dos Deputados”, e se referiu ironicamente ao parlamentar como “imperador do Japão”. Lira alinha nomeados na CBTU, com José Marques de Lima, em Maceió, (R$ 1.3 bilhão); o novo ministro do Esporte, André Fufunka; o superintendente da CODEVASF, João Pereira; e do DNDCS, João Garrote, sem contar a CEF com a menina dos olhos do PT, o Minha Casa Minha Minha Vida, com seus R$ 9,7 bilhões.
Se esse potencial de poder político não é suficiente para preparar e aplainar uma candidatura à presidência da República em 2026, sem alarde e sem ter um adversário ainda definido, não se tem notícia de vantagem tão evidente em qualquer tempo nesta tumultuada República.
Foto da Capa: Agência Brasil