Depois de tentativas que se arrastaram por seis décadas, na semana que passou o Brasil deu o maior passo de sua história no sentido de uma reforma para simplificar o seu sistema tributário. Foi aprovado o texto-base da proposta de emenda à constituição (PEC) 45/2019, que prevê a reforma tributária em votação histórica na Câmara dos Deputados, em sessões sucessivas nas noites e madrugadas de quinta-feira (6/7) e sexta-feira (7/7), por placares folgados de 382 votos sim e 118 não, no primeiro, e 375 sim e 118 não. Aprovada nos dois turnos, a matéria segue para o Senado.
A sessão foi encerrada por volta de 1h53min, com votação de um destaque, que podia modificar o texto principal, mas foi rejeitado. Outros quatro destaques ainda precisam ser votados. Conforme anúncio do presidente da Casa, Arthur Lira, a análise seria retomada a partir das 10h da sexta-feira. Antes do início da votação, Lira, fez um pronunciamento na tribuna, no qual chamou o momento de “histórico” e disse esperar um resultado consagrador. A vitória veio depois de um novo recorde no empenho de emendas de congressistas em um dia. Foram R$ 5,4 bilhões reservados no Orçamento no dia 05 de julho. As emendas Pix, que caem diretamente na conta dos municípios, são a maioria: R$ 5,3 bilhões. O recorde anterior de reserva de emendas em só um dia foi na terça-feira anterior, 04 de julho, de R$ 2,1 bilhões.
“O momento é histórico, não nos deixemos levar por críticas infundadas. Não nos deixemos levar por radicalismo político. Reforma tributária não será joguete político na boca de ninguém. Reforma tributária não é barganha política, não é pauta de governo. É pauta de Estado”, afirmou Lira. Inicialmente, a Câmara rejeitou requerimento do PL para adiar a votação. Foram 357 votos contra o adiamento, 133 a favor e 3 abstenções. Para se aprovar uma PEC, são necessários 308 votos.
A proposta prevê alterações nas leis que determinam os impostos e tributos pagos pela população, além do modo de cobrança no País. O objetivo é tornar o sistema tributário mais simples e transparente. Entre os pontos principais, o texto prevê a substituição de cinco tributos: Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Programa de Integração Social (PIS), Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e Imposto sobre Serviços (ISS).
No lugar do IPI, PIS e Cofins, que são de arrecadação do governo federal, terá a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). A União define a alíquota neste caso. Já no lugar do ICMS e do ISS, que são arrecadados por Estados e municípios, terá o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Os Estados e municípios definem a alíquota neste caso.
Os tópicos a seguir foram sintetizados a partir de notícias da Folha de São Paulo e de O Globo das edições de sexta-feira, 7/7/23, e sábado, 8/7/23.
Objetivo da reforma
- Simplificar o sistema, reduzir custos e a judicialização
- Desonerar investimentos e exportações
- Tornar mais justa a divisão da arrecadação entre estados e municípios
- Reduzir a tributação das famílias mais pobres
Como funciona o IVA ou IBS
- Acaba a cobrança de imposto em cascata (imposto sobre imposto)
- Cada empresa paga apenas o imposto referente ao valor que adicionou ao produto ou serviço
- Legislação única (hoje, cada município e estado tem a sua)
- Não incide sobre investimentos e exportações
- Arrecadação fica no local (estado ou cidade) onde a mercadoria ou serviço foi consumido
- Recursos destinados obrigatoriamente para saúde e educação e outras vinculações constitucionais serão mantidos
Outros países seguem esse modelo de tributação?
- Os novos tributos seguem o sistema conhecido como IVA (Imposto sobre Valor Agregado)
- Ele é utilizado em mais de 170 países (na maior parte da Europa e da América Latina)
Carga tributária não muda
- Novas alíquotas serão calibradas para manter a carga tributária sobre o consumo
Que tributos serão distribuídos?
- Três tributos federais (PIS, Cofins e IPI)
- ICMS (estadual)
- ISS (municipal)
- Representam cerca de 50% da carga tributária e 90% da arrecadação com bens e serviços
Que tributos serão criados?
- Um tributo federal: CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços)
- Um IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) dividido entre estados e municípios
- Imposto Seletivo federal: sobre itens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, e também sobre bens produzidos na Zona Franca de Manaus até 2073, quando forem produzidos em outras regiões
Qual será a alíquota?
- A soma das alíquotas do CBS federal + IBS é estimada em 25% (percentual médio que já é pago hoje), segundo cálculos de especialistas
- Haverá uma alíquota padrão, outra 60% menor e isenções
- Sub-alíquotas: cada estado ou município pode aumentar ou reduzir sua parcela na alíquota geral, mas a mudança vale para todos os bens e serviços, ou seja, não pode beneficiar um setor
Quais itens terão alíquota 60% menor?
- serviços de educação;
- serviços de saúde;
- dispositivos médicos;
- alguns medicamentos (outros terão alíquota zero);
- transporte público coletivo (podendo chegar a isenção);
- produtos agropecuários in natura;
- produtos da cesta básica (insumos agropecuários, alimentos e produtos de higiene);
- atividades artísticas, culturais, jornalísticas e audiovisuais nacionais
- dispositivos médicos e de acessibilidade para pessoas com deficiência
- medicamentos e produtos de cuidados básicos à saúde menstrual
O que ainda precisa ser definido
Com a reforma, o Brasil adota o IVA (Imposto de Valor Agregado), um tipo de tributo não-cumulativo, em que a empresa recolhe apenas o imposto referente ao seu produto ou serviço. Todo o tributo pago na aquisição de insumos, máquinas e equipamentos do negócio, bem como gastos com energia, telefonia e transporte viram créditos. O contribuinte recebe o crédito correspondente ao imposto pago na etapa anterior para abater na seguinte. O texto chegou a prever que o crédito seria liberado em até sessenta dias, mas a versão final não define prazo ou sistemática. Os critérios serão definidos em lei complementar.
Alguns tributaristas acreditam que o reconhecimento do crédito seria automático. Outros acreditam que o fundo que vai gerenciar os recursos de Estados e municípios na transição para o IVA será uma garantia para reconhecimento dos créditos nesses entes. No caso da União, o futuro tratamento é uma incógnita.
O Brasil tem um longo histórico de brigas judiciais entre empresas e órgãos de arrecadação por causa da demora na liberação desse tipo de crédito ou até pelo não-reconhecimento do direito a recebê-lo. Nesse ambiente, a indefinição é considerada um item sensível pelos especialistas.
Outra mudança estrutural que vai dar trabalho é definir o local de recolhimento do imposto sobre consumo, ou, como regra o jargão tributário, onde ocorre o “fato gerador” da tributação dos IVAs. O modelo brasileiro prevê que o imposto fica para o ente da federação onde está a sede da empresa que fornece o produto ou o serviço. A reforma transfere o recolhimento para o destino onde o bem ou serviço é consumido. Nas transações físicas não há dúvida sobre o que é destino. Se um carro é produzido em São Paulo e vendido em Sergipe, o imposto passa a ser recolhido no estado nordestino. Mas em um mundo interligado pela internet e com inúmeras transações virtuais, a discussão sobre o tema se torna mais elaborada.
Transição longa para estados e municípios é risco de mais subsídios
Foi estabelecido um período de transição entre 2026 e 2032, e, na largada, a CBS terá alíquota de 0,9%, e o IBS, de 0,1% para efeito de teste. A CBS entra em vigor já em 2027. O IBS, no entanto, terá uma transição mais gradual. ICMS e ISS serão reduzidos ano a ano, enquanto o IBS vai sendo elevado. Pelo cronograma, a proporção será de 1/10 de IBS em relação ao ICMS e o ISS em 2029, evoluindo até 4/10 em 2032, antes da extinção dos dois tributos em 2033. Um fundo de compensação vai garantir que Estados e municípios mantenham a arrecadação registrada antes da adoção das mudanças. Ao mesmo tempo, espera-se redução de benefícios fiscais que estão atrelados ao ICMS e ao ISS. O tributo desaparece, e o benefício some junto.
Especialistas, no entanto, dizem que o prazo e a sistemática da transição e os valores estimados para o fundo abrem espaço para a permanência dos benefícios tributários nos estados e municípios, um problema antigo que alimentou a guerra fiscal, e a reforma deveria extinguir.
As divergências ainda são grandes no caso da lista de setores que serão exceção na adoção das alíquotas gerais dos IVAs. Há os isentos, os que terão alíquota zero ou reduzida, e até um grupo que poderá optar por outro tipo de tributação, que ainda não foi definida, caso de todo o setor financeiro e da construção civil.
Algumas exceções eram esperadas e fazem sentido técnico, explica a tributarista Vanessa Canado, coordenadora do Núcleo de Tributação do Centro de Regulação e Democracia do Insper. “Bancos, por exemplo, costumam ficar de fora porque é muito complicado aplicar IVA no spread [diferença entre os juros pagos pelos bancos ao captar o dinheiro e a taxa que cobram para emprestar recursos], afirma ela.
Os especialistas lembram que algumas exceções também se encaixam no escopo de políticas sociais. O texto final, por exemplo, dá isenção ou alíquota zero para reabilitação urbana de zonas históricas e reconversão urbanística. A criação de uma cesta básica nacional já havia sido enquadrada na mesma lógica. No entanto, muitas exceções têm caráter político, para garantir apoio à reforma ou atender a lobbies de setores mais organizados, o que levou a excessos.
Na reta final da votação na Câmara, as igrejas conseguiram estender benefícios a suas organizações assistenciais e beneficentes, caso de creches, para exemplificar. Serviços de saúde, educação, transporte coletivo e produtos e insumos agropecuários receberam um desconto maior, da ordem de 40% em relação à alíquota cheia, que ainda será definida. Os tributaristas temem que o volume maior de exceções pode elevar a alíquota geral dos IVAs, como alternativa para cobrir as perdas com tantas benesses.
Foto da Capa: Deputados comemoram vitória na votação – Lula Marques / Agência Brasil