É tarde para falar em empatia. Essa palavra se gastou rápido demais. É tarde, porque seu uso desmedido e irreflexivo gerou um desgaste antes de que o conceito fosse burilado pela ação. Sei que soa chato e “patrulhento” o que digo, mas acontece que são caminhos imprevisíveis da linguagem no laço social.
Então, há quem responda muito mais com projeção – o conhecido mecanismo de atribuir uma qualidade ou defeito próprio à outrem – pensando se tratar de empatia. Essa que seria, efetivamente, a capacidade de habitar, por alguns instantes que seja, o lugar de outro. Tudo para, finalmente, atuar em consequência com a experiência desse outro.
Como psicanalista, a proposta me soa linda, mas um tanto ambiciosa e onipotente. Como cidadã e humane, simplesmente gosto e quero ver acontecer. Uma psicanalista é um bicho que está no já mencionado laço social, então, trato de lidar com esses ranços e fazer uma conciliação com a cidadã e, assim, tento meus exercícios empáticos mínimos.
O desafio aqui é fazer com estes não se tornem apenas um band aid para a culpa à espreita. Que culpa? Qualquer uma, porque tem sempre uma por perto. Tenho um amigo-irmão que ri gostosamente de si mesmo e do quanto ele adora uma culpa. Diz ele que não pode ver uma passando que já “se atira”, quer pegá-la para si. E é verdade, é só pegar. Mas só que não é grátis, não.
É aí que, talvez, nos enrosquemos em situações nas quais atuamos um tanto por impulso, como um arremedo de empatia sanadora, salvacionista. É que não queremos estar lá naquilo que merece a nossa empatia. Nem por um segundo queremos estar na borda do mundo, abrindo mão do centro.
Estamos na Terra, um mundo que sabemos ser fisicamente redondo, mas nem por isso a imagem nos serve como uma lição de igualitarismo, do fato de que não há centro real nessa superfície. Na maioria do tempo, vivemos esse mundo como se fosse uma pirâmide ou um quadro (alô, terraplanistas!). Cena na qual alguns poucos escolhidos são os protagonistas, enquanto outros estão às margens, na base, na coxia e na moldura.
Falo da borda do mundo periférico, mas não só. Nem preciso mencionar, mas lá vai: a borda do mundo dos não brancos, das mulheres, das pessoas com deficiência, da população trans – de um modo geral, da população LGBT – e de um etcétera que gostaria de considerar em seguida.
O problema do desgaste de dita palavra passa também por essa demanda incessante para que se “tenha” ou se “mantenha” a tal empatia, mais como um “valor” político e menos como uma ação prática. Aliás, bem sabemos que valores – monetários e morais – nem sempre resultam em ações práticas. Porém, nem toda moeda retida rende os juros que queremos e está bastante nítido que esse mundão anda sedento por trocas e movimentos “em espécie”. À falta de alternativas mais solidárias, a migração é um desses movimentos que já não podemos mais ignorar.
Parece ser verdade que o olhar transeunte está mais em dia com a realidade do que aquele vidrado nas telas. Uma paráfrase pode resumir o assunto: caminhar é preciso. Caminhadas, – flanantes ou não – vão mostrando, a quem se interessa, aquilo que os políticos que fazem a gestão das nossas cidades querem esconder: a realidade da presença cada vez maior das migrações.
Uma realidade que, muitas vezes, roça a pobreza e a miséria. A caminhada dá acesso à precisão daquilo que pode estar mais ao meu alcance como experiência, como uma potência superior ao clique de milhões sobre a realidade dos outros tantos milhões de refugiados ultramar. No entanto, não quer dizer que outras mídias não possam transmitir uma experiência que recoloca esse olhar em uma conduta.
Assim tem sido meu encontro há uns quatro anos com um pequeno livro de Marielle Macé: Siderar, Considerar: migrantes, formas de vida (Bazar do Tempo, 2018).
Esse ensaio sidera e considera o tema das migrações com “Poesia e ira”, fazendo da consideração “uma virtude de poeta” (p. 33):
“E isso vale muito bem à liberação de uma ira contra todas as maneiras, inclusive as doutas e virtuosas, de ser desatento. Belas iras estas que têm por único inimigo o desatento: aquele que não vê a diferença, aquele que não vê o problema, aquele para quem ‘isso não é nada’…” (Macé, 2017, p.35).
Faz muito tempo que penso em um futuro migrante global tão emaranhado que confunda as estruturas das nações. Nessa confusão, anseio que seja mais difícil ser desconsiderado. Enfim, divido anotações de devaneios esperançosos que possivelmente resolvam pouco, mas como diz a tautologia: algo é algo.
Com Macé, penso que a ira pode chegar a ser mais virtuosa do que a empatia samaritana. Até porque existe um certo bonde chamado desejo, que no fim nos coloca a pensar sobre a “bondade de estranhos”. O desiderium enlaçado a uma boa ira pode ser mais interessante, porque nos faz contribuir desde um lugar mais implicado, desejante. Em todo o caso, na falta de qualquer desses elementos, uma boa dose de consideração comum já é bem-vinda.
Foto da Capa: Freepik.
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