O barulho insistente deu um susto em Ana Paula. O telefone fica sempre no mudo e não toca quando o número não é conhecido.
Sem paciência pra falar no telefone, lá foi ela ver quem se atreveu a ligar.
Era Clarinha, sua amigona, que sempre reclamava dessa mania dela, de não gostar de falar pelo telefone.
Vou atender, né ? Pode ser que alguém esteja morrendo ou precisando de mim, pensou.
– Fala, Clarinha!
– Não acredito, monstra!! Ana Paula atendeu minha ligação, que honra!!
– Quem morreu ou em qual cadeia devo te buscar, Clarinha?
– Para com isso, é urgente. Estamos passando na tua casa pra ir no Bloquinho do Ranço.
– Que bloquinho o que, mulher? Odeio carnaval, odeio bloquinho, odeio samba, odeio purpurina, suor e cheiro de mijo na rua, esqueceu?
– Eu sei, Ana, mas esse é um bloco criado especialmente pra quem tem ranço de carnaval. E você, sendo a pessoa que mais tem ranço dessa festa maravilhosa, vai ser nossa musa e rainha da bateria, que tal?
– Mas nem fedendo que eu saio de casa, do meu ar condicionado, da minha maratona de séries, livros, pipoca e chocolates pra passar raiva na rua.
– Você vai se divertir, eu garanto!
– Não, não mesmo. E nem sambar eu sei, como vou ser rainha da bateria?
– Então, o Bloquinho do Ranço precisa de uma representante rabugenta e que entre no papel, que não saiba dançar e faça tudo de cara amarrada. E quem melhor do que você pra isso?
– Como assim rabugenta, Clarinha?
– Pensa, Ana, quem mais odeia tanto o Carnaval quanto você?
– Muita gente, Clarinha, e você mesma odiava antes de conhecer esse teu peguete tocador de cuíca.
– Ana, pensa! Você vem com a sua roupa de ficar em casa, aquela camiseta furada e larga, e teu short-cueca nada sexy. Completando o look, deixa o seu cabelo preso naquele coque ridículo no topo da cabeça e a cara lavada, daí a gente coloca a faixa de Rainha do Ranço e pronto, você vai arrasar, sem esforço e sendo você mesma!
– Clara Maria Lopes, nossa amizade está por um fio, e se eu ouvir mais alguma ideia ridícula, vou desligar o telefone.
– Calma, mulher, mal foi coroada a Rainha do Ranço e a coroa já subiu à cabeça, disse Clara sem noção do perigo.
– Você já bebeu às 9 da manhã ou experimentou alguma droga que não conheço? Tá alucinando, Clarinha?
Um silêncio desconfortável se fez. Ana Paula extremamente irritada e agora com ranço não apenas do Carnaval, mas das pessoas, como Clarinha, que acham que todo mundo tem que gostar de pular pela rua no meio de um monte de gente desconhecida e fedida, alguns realmente alegres, outros apenas fingindo que estão. Tudo tem que ser festivo, e nem as notícias escapam, com matérias e editoriais sobre as brigas de egos, as roupas minúsculas que custam milhões e as tretas dos ricos e famosos nos camarotes. Como as pessoas podem gostar disso, enquanto a realidade é cruel e nem o mundo nem as contas vão se acabar na quarta-feira?
Como se adivinhasse os pensamentos da talvez ainda amiga, Clarinha quebra o silêncio:
– Entendo, concordo e também não acho tudo lindo no carnaval. Mas pensa, é a festa mais democrática que existe, o povo tem que se divertir, e a gente precisa rir um pouco, até dos nossos próprios defeitos e manias.
– Ok, Clarinha, você venceu.
– Oba!!! Em 5 minutos chegamos aí pra te buscar.
Ana Paula desligou o telefone, o interfone, colocou os fones e foi pra varanda ler um dos livros da Lista “É Carnaval! Confira 8 dicas de livros para ler no feriado”.
Todos os textos de Anna Tscherdantzew estão AQUI.
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