A mergulhadora se concentra, segura o cabo da corda que a guiará até as profundezas, respira profundamente por repetidas vezes e mergulha no azul profundo. Cenas assim, como as que aparecem em filmes como “De Tirar o Folego” (Netflix) descrevem humanos que chegam ao extremo do mergulho com apneia, chegando a ficar 12 minutos sem ar. E conseguem atingir profundidades de 240 metros. Mas eles e elas são exceções, que só chegam a isso depois de muito treinamento.
O ser humano comum consegue ficar sem ar ou, mais especificamente, oxigênio, por cerca de 2 minutos (4 até a morte encefálica). Isso se forçado. Numa situação sob controle, em que podemos decidir quando voltar a respirar a maioria das pessoas só prende a respiração por menos de 1 minuto.
De qualquer forma, não conseguimos ficar vivos muito tempo sem oxigênio. Também não conseguimos sobreviver sem água mais do que dois ou quatro dias. Sem comer nada por algumas semanas, a depender da idade, condição física e quantidade de gordura da pessoa.
Atualmente estamos preocupados (ainda que nem todos) com as mudanças climáticas e as demais consequências do aquecimento global (como secas, queimadas e degradação ambiental), assim como com poluição química e plástica, e outras ameaças à qualidade da vida humana e à saúde dos ecossistemas do planeta.
Todas essas ameaças são reais e perigosas, e podem tornar nossa vida muito mais difícil e, no longo prazo, até mesmo inviabilizar a sobrevivência de nossa espécie. Tenho falado sobre isso em minhas colunas da Sler, e esse é o tema do meu livro “Planeta Hostil”, que foi publicado este mês1.
Mas, o que dizer dos três componentes sem os quais perecemos em pouco tempo: oxigênio, água e comida?
Apesar do mal-estar causado pela poluição, principalmente nas áreas urbanas, e da fumaça das queimadas, que podem parecer de fato sufocantes, não deveremos ter problemas em conseguir oxigênio para respirar. Os humanos consomem cerca de 2,7 bilhões de toneladas de oxigênio por ano, uma quantia insignificante comparada com os 1,2 quatrilhões de toneladas de oxigênio contido na atmosfera2.
Mas a água é outra história. O mundo vive uma crise hídrica sem precedentes, em parte causada pelas mudanças climáticas, em parte pela má utilização dos recursos hídricos pela humanidade.
Setenta e um por cento do planeta é coberto por água. Mas somente cerca de 2% disso é representado por água doce, que está, em sua maior parte, acumulada na forma de gelo. Por isso, uma fração muito pequena, somente 0,007% da água do planeta está disponível na forma de água doce para o consumo humano.
Todos os dias cada ser humano consome, em média, 3 mil litros de água per capita para consumo direto e produção de bens. Desses, 100 litros são usados em higiene e consumo e cerca de 150 litros nas necessidades domésticas. A indústria consome cerca de 250 litros por dia e a produção de alimentos 2.500 litros.
Isso mesmo, a maior parte da água utilizada pelos humanos é usada na produção de comida. E principalmente na criação de animais e na produção dos alimentos deles derivados: carne, laticínios e ovos. O processo completo para colocar um hamburguer na sua mesa utiliza 9 mil litros de água; 250 gramas de ovos: 1.800 litros; queijo: 3.500 litros; 1 litro de leite: 4 mil litros. É muita água!
Portanto, a crise hídrica ou, em outras palavras, a crescente escassez de água que estamos vendo no mundo, não afeta apenas as nossas necessidades pessoais, mas todo o sistema mundial de produção de alimentos.
E o mundo continua faminto. Se as tendências verificadas até agora continuarem, vamos precisar gerar mais 50% de energia até 2050, mas vamos precisar aumentar em 100% nossa produção para alimentar os 10 bilhões de habitantes que o planeta terá em 2050
Precisaremos de muito mais água e, naturalmente, solos férteis para produzir toda essa quantidade de alimentos. E ambos estão se esgotando rapidamente.
Um fato que pode ser estranho para os brasileiros: metade da população do mundo depende da água fornecida pelo degelo das montanhas que ocorre todo ano no final de inverno e início da primavera. E as geleiras das montanhas estão se reduzindo dramaticamente.
Um dos exemplos mais notáveis é o rio Colorado, que corta a região desértica do sudoeste dos Estados Unidos, e fornece água para muitas fazendas e cidades, entre as quais a famosa Las Vegas.
Boa parte da água do rio Colorado vem das geleiras das Montanhas Rochosas. A vazão do rio Colorado diminuiu 20% desde o ano 2000, e seus reservatórios ficam mais baixos a cada ano. O gelo das Montanhas Rochosas ainda fornece água para cidades como Salt Lake City, Denver e muitas outras do meio oeste americano. Além dos aquíferos que são usados para irrigar as lavouras dos principais celeiros de grãos do país.
Os Estados Unidos estão com uma perspectiva muito ruim em termos do futuro de seu abastecimento d’água.
E não estão sozinhos. Cidades e mesmo países inteiros de todo o mundo estão sendo afetadas por falta de água crescente. Em 2008, Barcelona enfrentou a seca mais severa já registrada em sua história, e teve que importar água da França. No sul da Austrália, a chamada “seca do milênio” começou em 1998 e se prolongou por doze anos, com uma precipitação equivalente à do Vale da Morte ocorrendo na maior parte do período.
Na Índia, atualmente, 600 milhões de pessoas já convivem com dificuldade ao acesso de água e 200 mil morrem por ano por falta ou contaminação de água. Em 2030, a Índia vai dispor de somente metade da água que precisa.
A Índia tem 1,4 bilhão de habitantes, e atualmente produz quase toda a comida que consome, mas grande parte da população é subnutrida. Mas sem água para utilizar na agricultura pode atingir um estágio de grande insegurança alimentar.
No Brasil a situação não é tão grave, mas pode se tornar. Várias cidades e regiões brasileiras enfrentam problemas frequentes com a seca. Em 2015, São Paulo esteve a ponto de atingir o “Dia Zero”, que é como se chama o dia em que todas as torneiras secam completamente.
O Rio Grande do Sul entrou em 2023 com uma seca que já perdurava por três anos. Em 2022, a seca foi a principal causa de uma redução de 6% no PIB do estado, em um ano em que choveu muito no resto do Brasil, por conta do fenômeno La Niña, que tem o efeito contrário no RS.
A Amazônia vivenciou em 2023 a pior seca registrada na história. Esse evento, que deveria ocorrer a cada 350 anos, tornou-se 30 vezes mais provável por conta do aquecimento global.
A água doce é um exemplo de um recurso natural que era abundante e está se tornando escasso pelo uso descontrolado, infraestrutura ineficiente e urbanização sem planejamento.
Mesmo com um quadro que já é crítico, o desperdício ainda é uma realidade. Algumas cidades perdem mais água em vazamentos do que entregam nas casas. Mesmo em países desenvolvidos os vazamentos são estimados ser entre 15 e 20%. No Brasil a estimativa é de 40%. Esse dado é alarmante. 40% da água que nos custa caro para coletar, limpar e tratar não chega aos consumidores finais.
E, como costuma acontecer num mundo tão desigual, a abundância de água que ainda está disponível para alguns significa escassez que pode ser mortal para muitos. Hoje em dia, 3,6 bilhões de pessoas vivem em áreas onde há falta de água durante pelo menos um mês por ano. Em 2050 deverão ser 5 bilhões de pessoas. Veja bem, esses números se referem ao uso doméstico, incluindo água para beber!
No tocante à produção de alimentos, há um outro problema muito grave: a perda de terras produtivas. Os solos férteis podem ser considerados riquezas não renováveis, devido ao longo tempo necessário para sua recuperação.
A cada ano o mundo está perdendo 24 bilhões de toneladas de solos férteis. Isso significa 3,4 toneladas por ano para cada habitante do planeta. O custo dessa perda é estimado em 500 bilhões de dólares por ano. Muito mais do que os recursos que estão sendo aplicados na sua recuperação.
Solos férteis levam muito tempo para se formar. Não se trata apenas de uma mistura de pedras, areia e lama. Um solo fértil é um ecossistema complexo. Se você apanhar um punhado de solo com sua mão, vão existir ali mais microrganismos do que pessoas na Terra. Os solos são o resultado de um longo processo de decomposição, transformação a agregação de incontáveis organismos. Leva cerca de 500 anos para se formar uma camada de 2,5 centímetros de solo.
A erosão dos solos nas lavouras é estimada em ser atualmente dez a vinte vezes maior do que sua recomposição. Cerca de um terço das terras férteis do mundo desapareceu nos últimos 40 anos e, se continuarmos no ritmo atual, em cerca de 60 anos não haverá mais solos férteis no mundo.
Essa perspectiva me parece absolutamente assustadora.
Em resumo, temos que cuidar com muito cuidado dos nossos mananciais e sistemas de distribuição de água doce, aprimorar o manejo e utilização do solo, e mudar a maneira como produzimos e consumimos alimentos. Você vai dizer que isso é fácil de falar, mas difícil de fazer.
Eu não poderia concordar mais. Mas não temos outra alternativa.
Notas
1O livro “Planeta Hostil”, do qual extraí alguns dados para essa coluna, foi publicado pela Editora Matrix, de São Paulo, e pode ser adquirido no seu site (aqui) ou na Amazon.
2Parte das informações utilizadas nessa coluna foram obtidas no livro How the World Really Works, de Vaclav Smil (Penguin Random House, 2022).
Observação final: Para vídeos e textos adicionais confira também minha conta do Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: EBC