Como essa é a primeira coluna do ano, muitos ainda estão de ressaca do réveillon e ainda estamos naquele clima de festas, me arrisquei aqui a colocar possíveis resoluções para esse ano que se inicia.
- Seja península
Amos Oz lembrava o maravilhoso verso de John Donne, “Nenhum homem é uma ilha” e acrescentava: “Nenhum homem é uma ilha, mas cada um de nós é uma península.”
O escritor israelense dizia que “somos todos parcialmente ligados ao continente, que é a família, a nossa língua, a sociedade, a arte e as ideias, o Estado e a nação etc., e a outra parte de cada um de nós está de costas para tudo isso e olha para o mar, para as montanhas, para os elementos eternos, os desejos secretos, a solidão, os sonhos, os temores, e a morte.”
Segundo ele, as religiões, as ideologias, o nacionalismo nos levam ao continente, ao nosso apagamento como indivíduos transformando-nos em pequenas partículas de um todo. Em sentido contrário, estão as forças que nos afastam do continente, nos empurrando para uma vida isolada, em que cada pessoa é uma ilha, em luta permanente com as outras ilhas: é o mundo da eterna competição, onde o outro é um adversário podendo se tornar um inimigo.
Como aponta o autor em seu ensaio “Caro Fanático”, de um lado há o desejo fanático de derreter o outro até que se funda totalmente com o corpo da nação, da crença, ou do movimento, até que esteja totalmente mobilizado em prol da missão sagrada. Do outro, os esforços de outros fanáticos, que tentam fazer nossa cabeça, temendo que, se não formos agressivos e egoístas o tempo todo, ficaremos enfraquecidos e perdidos e logo virão os fortes e tirarão de nós tudo o que é nosso.
Apesar deles, diz o escritor, “é melhor continuarmos a ser penínsulas. Isso, pelo visto, é o que nos fará bem”: um mundo em que toda casa, toda família, todas relações, existam como um encontro de penínsulas.
Que esse ano, seguindo o conselho de Oz, que sejamos penínsulas, que possamos “estar perto um do outro, às vezes bem perto, mas sem se apagar. Sem anular a individualidade.”
Em 2024, seja península.
- Pratique o Farguinen
Um passo mais adiante em nos relacionarmos com outras penínsulas é praticar o farguinen. Essa palavra vem do iídiche, o idioma dos judeus europeus que mescla alemão, hebraico e salpicado por palavras e expressões dos locais de origem de cada falante da língua. Foi incorporado ao hebraico como firgun e suas origens remontam a um termo talmúdico, o ayn tov, o olhar bondoso, que é o oposto do “ayn rah”, o mau olhado.
Farguinen é o elogio sincero, o prazer ou orgulho genuíno e altruísta sentido pelas realizações de outra pessoa. O que caracteriza esse sentimento é a capacidade de alegrar-se por sucessos ou realizações alheias sem pensar em nossos interesses pessoais.
De modo involuntário, Cássia Zanon definiu essa palavra em sua crônica “A alegria de pegar carona na alegria alheia”, publicada há algumas semanas aqui na SLER: “aquele calorzinho bom que sentimos por dentro quando vemos alguém de quem gostamos muito tendo sucesso ou vivendo uma grande alegria, o que acaba nos fazendo sentir bem também.”
Cássia apontava o seu enorme e infrutífero esforço de encontrar e “perguntava” a palavra (que) define a sensação boa que temos quando vemos pessoas de quem gostamos tendo sucesso? Se não existe em português, na cultura judaica ela é o farguinen ou firgun.
O rabino Nilton Bonder diz que o farguinen é o contrário da inveja. Eu prefiro pensar que ela é o oposto do schadenfreude, a palavra alemã que define o sentimento de alegria diante do sofrimento alheio. Talvez, em nossa sociedade, sua maior expressão seja o chamado “secador” no futebol, o torcedor que vibra com o fracasso do rival.
Em seu livro “A Cabala da Inveja”, Bonder dedica um capítulo a esse termo. Diz ele:
“A língua iídiche possui um verbo que é no mínimo raro, se não único: farguinen. Seu significado poderia ser traduzido como ‘abrir espaço’, ‘compartilhar prazer’, ou simplesmente como o oposto de invejar. Portanto, se invejar significa ter desgosto e pesar pela felicidade do outro, farguinen tem o sentido de compactuar com o prazer e alegria do outro.”
Conclui ele:
“Representa o espaço que permitimos ao outro para que exteriorize sua alegria, sua sensação de sucesso ou felicidade.”
Isso não é fácil, como diz o rabino, “sofrer com um amigo ou com o próximo e auxiliá-lo é muito mais fácil do que o farguinen. É muito mais difícil conseguir compartilhar dos momentos alegres do outro com sinceridade.”
O título do capítulo, não por acaso, é “Abrindo o Espaço”. Para se praticar o firgun é preciso abrir espaço para a alegria do outro sem se sentir diminuído. Não é algo que aprendemos de forma intuitiva ou naturalmente, precisamos aprender a fazer isso. Para termos sucesso, é preciso abrirmos espaço dentro de nós mesmo para que possamos cultivar esse sentimento.
Em 2024, pratique o Farguinen
Concluindo essas mal traçadas linhas, para ser península ou praticar o farguinen, é preciso enxergar o outro como um igual, é preciso abrir o espaço para que ele possa expressar suas convicções e suas alegrias. Abrir espaço significa ouvir. Escutar sem procurar convencer o outro de suas verdades nem tratá-lo como um espelho que somente tem beleza quando reproduz nossas próprias convicções.
Fácil, definitivamente não é. Mas, não tentar é se contentar em ser uma ilha nutrida pela inveja e enxergar o próximo como uma ameaça ou um competidor. Não vejo pior resolução de Ano Novo do que essa, recusar-se a crescer, afinal, “eu sempre fui assim”.
Um feliz 2024 para meus leitores e minhas leitoras!