Abri a caixa de correspondência do consultório e encontrei ali um pequeno pacote com uma etiqueta escrita em chinês.
Eu estava indo para um compromisso, mas fiquei tão curioso que levei o tal pacote comigo, para abrir no caminho. O que poderia ser? Não lembrava de ter feito nenhuma encomenda, ainda mais de um país tão distante.
Fui abrindo a embalagem enquanto caminhava, no meio da rua, mesmo. Após desenrolar camadas e mais camadas de plástico bolha, finalmente cheguei no produto. Foi um misto de decepção e de alívio: sim, eu havia realmente realizado aquela encomenda.
Eu tinha mesmo pedido aquele conjunto de lenços para limpar tênis brancos.
Como pode alguém que passou os anos 90 na frente da televisão, alguém que foi entretido pelo Shoptime e pelos comerciais das facas Ginsu e das meias Vivarina ter caído nessa de comprar um desses produtos que se dizem milagrosos?
Chegando em casa, minha companheira viu o pacote em cima da mesa e me fez a fatídica pergunta: o que é isso?
Meio sem jeito, falei que eram lenços pra limpar tênis brancos. E arrematei: “Vi num patrocinado e acabei comprando no impulso”.
Sim, mais uma confissão: eu fui influenciado por um post patrocinado no Instagram.
Dias antes eu tinha pesquisado no Youtube por métodos infalíveis para limpar tênis brancos. Claro que o algoritmo iria ler meus pensamentos e me ofereceria a solução mágica que eu estava atrás. E claro que, já inclinado a isso, eu acabei fazendo a compra. Mas será que eu queria mesmo o produto? Ou será que eu só quis quando vi o anúncio?
Em minha defesa, tenho a dizer que esta é a pergunta neurótica por excelência: será que desejo tal coisa ou foi alguém que me disse que devo desejar tal coisa? Será que quero mesmo trocar de carro ou só pensei nisso quando vi o novo automóvel do vizinho? Será que desejo mesmo comer naquele restaurante ou só me interessei porque um amigo falou bem da comida do lugar? Será que quero mesmo fazer tal curso na faculdade ou este é um desejo dos meus pais?
Quando comecei a clinicar, eu ficava um tanto constrangido quando algum paciente me fazia uma pergunta desse tipo. Realmente não sabia o que responder. Com o tempo, entretanto, aprendi o que falar. Enfim, quando alguém me pergunta se realmente quer algo ou se só está respondendo ao desejo de um outro, agora eu digo algo como: “Então, não tem como saber isso. É uma pergunta que não tem resposta, a gente só aprende a conviver com essa dúvida”.
Eu sei, caro leitor, que isso pode parecer decepcionante. Mas, veja bem, será que é mesmo possível a gente querer algo sem que antes alguém tenha nos mostrado o que é desejável no mundo? Será que temos como fazer escolhas sozinhos, como se não fôssemos influenciados?
Como seria possível se já desde antes de nascermos nós somos imersos em um jogo de desejos? Se quando alguém vê o borrão que somos no ultrassom e já diz algo como “ih, esse aí vai ser alto, aposto que vai jogar basquete” (qualquer semelhança com a realidade deste colunista é mera coincidência). Ou ainda: “Nossa, vai nascer bem entre o Natal e Ano Novo. Vai gostar de uma festa!”. E assim vai.
Todo esse falatório que fazem antes do nascimento e nos primeiros anos de nossas vidas vai nos mostrando o que devemos desejar e o que devemos ser para sermos desejáveis. E tudo bem, melhor assim: esta é a forma que nós encontramos para civilizarmos os nossos filhos e filhas, transmitindo para eles os ideais da cultura em que vivemos. Os bons pais se retiram deste lugar de ditar o que o filho quer ou não e permitem que ele mesmo faça a pergunta pelo seu desejo.
Ou seja, esse discurso que nos ensina o que desejar também nos ensina como desejar.
É imprescindível que alguém espere algo da gente. São essas expectativas que fazem que nós tenhamos confiança no futuro, que sintamos que vale a pena levantar todo dia de manhã da cama em busca de algo diferente. Sim, porque nós seguimos desejando assim, meio que por procuração, pelo resto de nossas vidas. Na vida adulta, é a sociedade que ocupa o lugar que era dos pais.
Todos somos suscetíveis ao canto das sereias dos posts patrocinados, essas versões atuais dos comerciais de facas e meias de outras épocas.
Talvez tenhamos tanta raiva dos influencers justamente porque eles explicitam essa contradição inelutável do nosso modo de desejar: que não existe desejo que não tenha sido antes uma oferta ou uma demanda.
Sobre os tais lenços, deve confessar que, para minha surpresa, eles realmente funcionam.
Não como o esperado, claro. Mas aí já seria esperar demais.
Foto da Capa: Pexels-Pixabay