O ditado “achado não é roubado” talvez seja a síntese da mentalidade nacional. O “achado” é um bem que não é seu, que uma vez esquecido ou perdido por alguém lhe daria o direito de se apropriar dele sem que isso se constituísse um ilícito, ainda que o Código Penal diga o contrário. Ah, essa lei não pegou. A voz do povo é que é a voz de Deus, afinal. E Deus, nesse caso, permitiria que o cidadão de bem, que não se sentiria um ladrão, afinal – roubasse sem culpa.
Experimente esquecer seu telefone celular em cima de um balcão de uma loja, num banco de um shopping center, já era. Se foi. E haveria lá trombadinhas à espera para dar o bote? Não, será um cidadão de bem que vai afanar o seu telefone na cara dura. Você já viu um caminhão cheio de produtos de consumo tombando numa estrada qualquer e em seguida, como uma nuvem gafanhotos, surgem cidadãos de bem de todos os lados para saquear a carga? Deu sopa, né?
Ou no engarrafamento da estrada? Não tem sempre aquele mais esperto que abre o caminho pelo acostamento e é seguido por um bando de cidadãos de bem com mais pressa e mais direitos que os demais?
Bem, então por que se estranhar que o Ministério da Defesa, leia-se Forças Armadas, tenha usado R$ 535 mil destinados ao combate à pandemia da covid para comprar filé mignon e picanha? O que tem de mais? Não tinha onde gastar, o dinheiro estava ali dando sopa, né?
Mas você imaginava, até antes da Era Bolsonaro, que um presidente da República estivesse acima destas perspectivas mundanas. Que ao sentar-se no trono presidencial a pessoa encarnasse a nobre missão do cargo de conduzir o destino de mais de 200 milhões de pessoas, guiar o futuro e e sair da vida um dia para entrar para a História.
Bolsonaro, no entanto, quebrou todos os paradigmas. E não vou repetir aqui tudo o que já foi dito. E todos sabíamos das rachadinhas suspeitas. E todos sabíamos também da suspeita proximidade com milicianos.
Foi por isso, então, que ninguém se espantou que o sujeito, mesmo no cargo mais alto do país, da forma mais vil e sorrateira, tenha tentado afanar e esconder presentes destinados à instituição Presidência da República. E não foi uma nem duas vezes. Foram três. Ontem, o delinquente entregou o terceiro lote de joias supostamente presenteadas pelo governo saudita. E digo supostamente, porque nem isso está provado. E a pergunta que não quer calar: terão outros objetos afanados que nem ficamos sabendo?
Ainda que seja triste constatar que vivemos incendiados por uma moral esquizofrênica, na qual não é mais feio nem roubar nem ser pego, onde cidadãos de bem – nossos vizinhos, colegas, familiares e até amigos – acham decentes as maiores indecências, a vida segue e consola saber que, talvez, ainda possamos ver por aqui o que se viu ontem nos Estados Unidos: o ex-presidente no seu devido lugar, o banco dos réus.