Quando criança, especialmente na idade escolar, eu tinha um pesadelo repetitivo.
Aliás, é comum termos estes sonhos ruins na infância e na adolescência, épocas em que estamos ainda construindo um repertório para explicar o mundo para nós mesmos. Sonhar é uma tentativa de dar sentido para a vida, é um dos modos que o nosso psiquismo tem de estabelecer um diálogo entre o nosso mundo interno e a realidade lá fora. Sonhar é tentar dar contorno e delinear limites e bordas.
Neste sentido, o meu pesadelo de infância é exemplar: eu sonhava que acordava – isso ainda dentro do sonho – com o barulho de passos de alguém que tinha entrado na casa e que tentava não ser percebido. O sonho acabava justo no momento em que eu estava prestes a ver o rosto do invasor. Geralmente eu acordava ofegante e sentindo palpitações no peito. Eu só conseguia voltar a dormir quando eu me levantava com medo da cama e passava por todos os aposentos da casa para me certificar de que não havia ninguém ali, de que havia uma distância entre o meu sonho e a realidade. De que havia um limite entre o meu pensamento e o mundo.
Nos últimos dias, caro leitor, tenho tido o mesmo pesadelo, inclusive ele se passa naquela mesma casa da minha infância vivida em uma cidade do interior.
Foi numa dessas noites em que acordei sobressaltado que me veio, como uma sacada inesperada, o motivo daqueles meus sonhos ruins de infância: eram a minha forma de elaborar a minha dificuldade de dizer “não”, de dar limites aos outros. Fui dessas crianças comportadas demais, sempre seguia as regras e dificilmente dava trabalho. Não raro, eu ficava tanto no meu próprio mundo de brincadeiras que meus pais passavam a tarde toda sem ouvir de mim.
Em outro termos, fui uma criança que sempre teve facilidade para impor a mim mesmo o “não”, mas com uma tremenda dificuldade de fazer isso com o outro. Não raro, eu sofria muita implicância na escola por parte dos colegas, o que hoje chamamos de bullying. Seja por algum aspecto físico, pela roupa que eu usava, pelo time que eu torcia ou simplesmente pelo fato de eu ter vindo de uma outra cidade, volta e meia eu me via na situação de ser agredido pelo outros, sem conseguir colocar a fronteira necessária para conter a situação.
Enfim, me faltava o repertório para dizer “daqui você não passa” para o outro.
Talvez eu tenha voltado a sonhar com a casa invadida nos últimos dias por conta deste espetáculo farsesco que temos visto nas estradas do Brasil. Um grupo se comportando como uma massa uniforme, pessoas completamente alienadas à certeza paranoica de estarem sendo perseguidas, absolutamente incapazes de lidar com o fato de que receberam um sonoro e taxativo “não” das urnas. Adultos covardes que usam crianças como escudo humano, incapazes de suportar que o mito a que tanto reverenciam perdeu. Simples assim: o povo disse “não” ao projeto fascista que se consolidava cada vez mais em nosso país.
O Brasil disse, em alto e bom som, “daqui vocês não passam”.
O problema é que hoje em dia todas as notícias nos chegam imediatamente, temos acesso em tempo real a vídeos e imagens de tudo que se passa no mundo à nossa volta. Nossos celulares nos notificam de toda e qualquer expressão da barbárie operada por esses adultos infantilizados que não aceitam a derrota; ficamos sabendo segundo a segundo sobre violações repetidas do laço civilizatório e mesmo de alusões meméticas a saudações e comportamentos nazistas.
Ainda que esta difusão ampla das notícias possa ter um efeito importante de alerta para o “perigo na esquina”, ela também provoca uma permanente sensação de invasão.
Durante os quatro anos do governo Bolsonaro, tivemos a nossa atenção sequestrada e o nosso pensamento colonizado. Quando os aspirantes a fascistas estiveram no poder, tivemos que lidar com uma realidade pautada pela intolerância, pelo rancor e pela falta de vergonha.
E mesmo agora que as eleições acabaram e o povo manifestou a sua escolha, ainda assim estamos lidando com nossos espaços sendo invadidos, nossas redes sociais sendo sitiadas e nos vemos sendo tomados como reféns ou pelo menos como espectadores do ódio incontido daquele que talvez nunca tenha aprendido que perder faz parte da vida, que há dignidade em saber-se vencido.
Em momentos como este, dar limite ao outro é também uma forma de preservá-lo de fazer ou dizer algo de que vá se arrepender logo ali adiante, quando os ânimos estiverem – torço por isso – mais calmos. Como quando pedimos a um amigo que não faça nenhuma escolha quando está bravo ou muito triste. Quando dizemos para aquele conhecido que durma mais um dia antes de resolver algo importante.
Mas como dizer “não” para estas pessoas que vivem na realidade paralela criada pelas fake news que recebem pelo WhatsApp todo o dia?
Como colocar limites naqueles que se julgam paladinos da verdade em uma guerra santa?
Como conversar com razoabilidade com quem caiu no torpor das ideias autoritárias?
Como manter uma conversa saudável com aqueles que acham que terão suas casas tomadas pelos “comunistas”, sem perceber que são eles que invadem a nossa intimidade e nos despejam da paz de nossos lares?
Mais ainda: como mantermos a nossa capacidade de pensar, trabalhar e sorrir quando os sonâmbulos estão tão perto?
Por via das dúvidas, darei uma volta a mais na chave da porta de casa antes de dormir.