Por que cresceste, curuminha
Assim depressa e estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para reviver a tempo
De poder…
Chico Buarque
Ela anda antecipando uma saudade…
Uma saída inevitável que se concretizou faz um ano, quando um prato já não era mais necessário na mesa, alguns dias da semana. Acompanhar o adolescer do filho vem reeditando o adolescer dela. Frase bonita, mas a experiência dói. Pouco ou muito, dói. No narcisismo de cada dia, quando se coloca os pratos na mesa.
Quanto se pode sentir uma presença pela ausência! Muito, especialmente quando a presença um dia ocupou o espaço quase-todo nela. O de dentro e, depois de 9 meses, o de fora. Que bom que tem o quase. E outros pratos. Um respiro para o diafragma.
Mas aquele prato, naquele lugar, que seguia vazio alguns dias na semana, ela insistia em colocar na mesa, distraída que estava com seu desejo.
O desejo dis-trai.
Ela queria mesmo era ele ali, e ela fazendo o prato dele, pelo menos.
Já que dar a comida na boca, ato que dava a ela tanto prazer, não cabia mais porque a boca dele já era grande.
Dos paradoxos do crescer…
Às vezes o desmame demora para a mãe. Não se faz aos poucos, nem pra sempre. Vai se fazendo em ato. Que corta. Na melhor saída. As mães já deviam estar advertidas disso pelo tanto que o peito racha quando se dá da própria seiva. Até sangra, às vezes. Mas o narcísico é péssimo pra algumas memórias…
É possível que o desmame tenha doído pra ela só naquela hora, depois de doze anos do filho já ter parado de saborear seu leite quente, prato servido e bebido com gosto por um ano. O deslocamento peito – dar na boca – fazer o prato tinha distraído o desejo.
A ausência daquele prato denunciava que ele havia crescido e já podia comer sozinho, preparar o prato sem ela, escolher a comida à revelia das suas vaidades.
Já fazia um ano, mas sentia como se fossem décadas. Às vezes, o anúncio de um futuro pesa mais que uma barriga de grávida.
Como des-mãe-mar?
“Há que se inventar outros jeitos, acompanhar a cria que já pode escolher as comidas do mundo, convidar os amigos e a namorada e encher mais a mesa de pratos alguns dias, não todos…”
Há que se inventar novos respiros. O diafragma agradece, tão prenhe que fica de angústia, às vezes.
Mudar de lugar não é fácil.
Atualiza as mudanças e as inevitáveis perdas. Aquelas que a gente sabe o que perdeu, e aquelas que a gente nem pode saber, de tanto que doeu. Essas doem mais porque nem puderam fazer memória. Ficaram no corpo.
Em análise, ela lembrou de uma música que a sua mãe cantava quando ficava triste, lembrando com saudade do pai dela, seu avô.
A canção era a conhecida “Naquela mesa”, de Nelson Gonçalves e Rafael Rebelo, lançada nos idos anos de 1974, curiosamente o ano do nascimento dela.
Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre o que é viver melhor
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor
Naquela mesa ele juntava gente
E contava contente o que fez de manhã
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho
Eu fiquei seu fã
(…)
Naquela mesa ‘tá faltando ele
E a saudade dele ‘tá doendo em mim
Naquela mesa ‘tá faltando ele
E a saudade dele tá doendo em mim.
Ao lembrar da canção enquanto falava da ausência desse prato que insistia em não se inscrever, ela ficou surpresa com a associação que fez. Era em torno da mesa que o filho quando criança escutava as histórias de super-heróis com os olhos brilhando, e depois, contava suas façanhas heroicas no parquinho da escola. Não é só comida que se coloca no prato de um filho. E de uma mãe. E de um pai.
Com a lembrança da música, ela se deu conta de mais um deslocamento: a filha-mãe com seu pai, a mãe-filha com seu filho, que um dia terá a própria mesa e talvez se torne pai…
Deslocamentos do amor classicamente edipiano, nos ensinou Freud e, antes dele, Sófocles. O amor faz trânsito. Claro, aquele que dá espaço para o diafragma respirar.
Então ela lembrou de outra música, de Caetano, a sua bela “Oração ao tempo”. Nela, o tempo tem a cara de um filho. “Que linda comparação”, ela pensou: “Talvez não haja outro modo de concretizar a passagem do tempo do que ver um filho crescendo”.
Então seu diafragma de novo apertou de angústia: talvez tanta dor também fosse pela proximidade de seu próprio fim. Inevitável. Irreversível. Como o tempo que passa. Às vezes é preciso esquecer um pouco a morte para seguir a vida. Esquecer depois de ter lembrado.
Mas luto é coisa que se respeita. Principalmente o seu tempo. De novo, ele. Neste momento, ela está transitando entre-lugares. Um tanto parada no entre, ensaiando uma saída. Às vezes, ruminando a comida do próprio prato. Cuidando para não cuspir no que comeu. Às vezes dá vontade, porque a travessia é bamba e o narcisismo resiste. Se segurar em alguma coisa ajuda. Ela vem se segurando nas palavras. Elas têm feito algumas pontes. Pontes são necessárias para atravessar. Algumas são banguelas e é preciso coragem para pisar.
“Ah, é preciso muita coragem para transitar em outras mesas”. Pensou em seu filho e sorriu.
Daniela Bridon é psicanalista, doutora em Psicologia e membro da APPOA (email, @DanielaBridon, @psicanalise_na_vida)
Leia também Daniela Bridon: Do re-ssentir ao desejar: ainda sobre o 8 de janeiro.