Nos anos noventa, eu já morava em Paris há algum tempo, onde estagiava com Philippe Mazet, no Hospital Avicenne, mas queria estender a temporada para mais uns anos. Vivia com a convicção de que ainda tinha muito queijo e muito vinho para provar. A opção melhor parecia desencravar um mestrado que exigia, entre outros trâmites, uma prova de proficiência em francês, a ser feita na Aliança Francesa, no Boulevard Raspail. Fui até lá, fiz a inscrição para o exame (oral), na secretaria do segundo andar, e desci com a consciência do dever agendado.
No caminho, vi no mezanino um restaurante do tipo bandejão que oferecia um almoço sob a bagatela de meia dúzia de francos (o euro não havia chegado), o que era uma notícia excelente para um exilado faminto e pé rapado como eu. Sentei-me de forma esparramada no espaço exíguo e comi como um Lord (ou um Monsieur) o feijão com arroz de patê no lugar do feijão.
À saída vi que todos haviam devolvido o tal do bandejão, mas não vi onde. Um Monsieur com cara de parisiense mal-humorado parecia ser uma boa fonte de informação e perguntei para ele onde era o tal lugar de devolver aquele treco metálico e respeitar o protocolo. Acontece que dei azar de lugar – place – em francês ser feminino e, depois de eu pronunciar uma lugar – un place -, ele me corrigiu, firme e retoricamente – UNE PLACE, Monsieur -, como se estivesse cumprindo a sua principal missão no mundo.
Ocorre que, à essa altura do exílio, eu também sabia ser mal-humorado e, com meu francês arroz e feijão sem patê, deixei bem claro para ele que a minha pergunta não se referia a gêneros. Ela não era gramatical e, sim, geográfica. Havia um certo humor na minha réplica, o que ele não percebeu e, depois de bufar três vezes como um bom francês, acusou-me de ser um mal-agradecido, estar no lugar errado e ter desperdiçado uma grande chance de aprender de graça. De graça foi mesmo uma impressão equivocada, diante do alto custo que eu teria de pagar, mais tarde.
Voltei três dias depois e, quando a sala 304 se abriu para o meu exame oral, dei de cara com o meu francês corretor. Seu jeito estava longe de ser gostoso e até hoje não sei se o meu péssimo desempenho deveu-se ao permanente mau humor dele ou ao meu arrependimento enorme e imediato de, sem saber, haver cutucado a onça gaulesa com a vara curta.
Sei que precisei repetir o exame para pleitear uma bolsa que eu jamais ganhei. Sei que ganhei a consciência de que convém pensar duas vezes antes de ser engraçadinho com um desconhecido ou quem quer que seja, o que pode ser válido para qualquer tempo, seja qual for o lugar. Ou, dependendo das circunstâncias gramaticais, a lugar.
Foto da Capa: Divulgação
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