Uma pessoa com mais razão do que sensibilidade talvez tivesse resistido à tentação de assistir Persuasão (Netflix, 2022), adaptação do último romance completo escrito por Jane Austen que estreou há duas semanas. As críticas negativas têm sido mais ou menos unânimes. Um dos comentários mais amenos que eu li dizia que o primeiro longa-metragem da diretora de teatro britânica Carrie Cracknell não apenas era a pior adaptação de Jane Austen dos últimos 200 anos, mas uma das maiores bombas da temporada. Meu autocontrole durou menos de uma semana. É uma verdade universalmente reconhecida que um fã de Jane Austen, possuindo ou não uma boa fortuna, irá assistir todas as novas adaptações que estrearem no cinema ou nas plataformas de streaming (com exceção das que envolvem zumbis, no meu caso).
A história de Persuasão começa sete anos após o rompimento do noivado de Anne Elliot (Dakota Johnson) com Frederick Wentworth (Cosmo Jarvis), na Inglaterra do início do século 19. Inteligente, confiante e ambicioso, mas sem fortuna, Wentworth era visto pelos amigos e familiares de Anne como um pretendente aquém do status social da noiva. Persuadida pelos conselhos supostamente sensatos que recebeu, Anne abriu mão do seu grande amor. Anos depois, a história se inverte: enquanto a família de Anne empobreceu, Wentworth ficou rico. No universo da autora de Orgulho e Preconceito, essa é a senha para voltar sete casas e recomeçar o jogo amoroso.
Há basicamente duas maneiras de transportar as histórias de Jane Austen para o cinema: como uma comédia romântica convencional estilo Sabrina (mulher cheia de qualidades e homem aparentemente sem coração descobrem que o amor supera todas as dificuldades práticas da vida) ou como sátira social com uma pitada de romance (mulher cheia de qualidades vive em um mundo regido por regras que tornam tudo mais difícil para o sexo feminino, inclusive o amor e as coisas práticas da vida).
Embora a segunda abordagem seja, em geral, mais fiel à riqueza do subtexto dos romances de Jane Austen, as versões mais açucaradas não são necessariamente ruins – pelo menos para quem não odeia comédias românticas. O problema com a nova versão de Persuasão, entre outros, é que o filme não é uma coisa nem outra. Como comédia romântica, não consegue fazer com que o espectador torça pelo desfecho previsível – seja porque o protagonista masculino tem o carisma de um pepino, seja porque a narrativa evolui de forma frouxa. Como sátira social, nem sequer se esforça em relacionar os quiproquós da heroína com a realidade da Inglaterra do início do século 19 – ou com qualquer outro tipo de realidade. Em resumo: é um filme feito para os fãs de Dakota Johnson e não para os leitores de Jane Austen.
Persuasão merece, portanto, todas as críticas que vem recebendo (e as que ainda vai receber) – com exceção talvez daquelas que apontam que o filme tomou liberdades demais em relação ao romance. Isso porque no contexto de adaptações literárias, Jane Austen e Shakespeare que o digam, não existe liberdade em excesso e sim leituras que não se sustentam – nem por conta própria nem à luz da história original.
A prova de que um romance escrito há mais de 200 anos pode continuar fazendo sentido nos contextos mais improváveis não é Orgulho e Preconceito e Zumbis (filme de 2016 com a seguinte sinopse: “cinco irmãs na Inglaterra do século 19 devem lidar com as pressões para se casar enquanto se protegem de uma crescente população de zumbis”) e sim Fire Island: Orgulho & Sedução (Hulu, 2022), a segunda adaptação de Jane Austen desta temporada.
O ponto de partida do filme é a viagem de um grupo de amigos para alguns dias de férias em Fire Island, ilha de Nova York conhecida como ponto turístico da comunidade gay das redondezas. Tomando todas as liberdades possíveis em termos de época, linguagem, gênero e etnias, o filme de Andrew Ahn é muito bem-sucedido ao atualizar alguns dos temas centrais de Orgulho e Preconceito: todas as ligações amorosas são atravessadas por relações de poder, esnobismo é brega, nenhuma fofoca é inocente e ninguém gosta de pessoas arrogantes.
Para boa parte dos leitores de Jane Austen, e também para quem nunca leu Orgulho e Preconceito, é mais do que o suficiente para garantir a diversão.