No dia primeiro de junho de 2023, uma década após a eclosão das chamadas jornadas de junho, eu publiquei aqui na Sler o texto “Junho de 2013: o mês que não acabou 10 anos depois”. Eu argumentei no texto o quanto a complexidade envolvida nas manifestações impede um fechamento histórico claro e bem-acabado. Ao longo do mês, acompanhei os veículos de imprensa e as abordagens diversas sobre a efeméride. A apuração dos repórteres mostrou haver mais divergências entre as fontes escutadas do que convergências.
Na reportagem especial do jornal Folha de São Paulo, construída em quatro capítulos, e intitulada Junho 13-23, o rico material multimídia e as remissões para a vasta cobertura da época compõem um qualificado material para fomentar um entendimento mais esclarecido sobre o fato e as suas consequências. Apesar de ser desafiador explicar o que levou à eclosão das manifestações, em função da diversidade expressa nas ruas, fica claro na reportagem o quanto é possível mapear as consequências das decisões políticas tomadas a partir do acontecimento.
A apuração do repórter Naief Haddad consegue categorizar dois conjuntos de ideias sobre as quais a maior parte das interpretações converge: a extrema direita cresceu e se fortaleceu no país e culminou na eleição de Jair Bolsonaro e as respostas às manifestações por parte dos governos, em especial da presidente Dilma, do governador Alckmin e do prefeito Haddad, foram insuficientes para acalmar os ânimos. Porém, reivindicações dispersas foram pontualmente atendidas como mostra este infográfico.
O fato é que as jornadas de junho colocaram os movimentos sociais, base de mobilização da esquerda petista, contra a esquerda instituída do poder governamental à época. Este foi o ponto de inflexão. Nada foi como antes no nosso amanhã, parafraseando o mestre Milton Nascimento. As políticas sociais de esquerda estavam sendo questionadas, nos moldes nos quais estavam postas, até por aqueles beneficiados por elas. E “ir às ruas” já era a forma brasileira de participação política conhecida pela esquerda e a partir de junho de 2013 também apropriada pela direita.
A minha pergunta é: como chegamos a tamanha falta de debate público dialógico sobre temas sociais? Quando a escuta social começou a falhar tão drasticamente? Ou teria sido a população ensinada a se manifestar em mobilizações de guerrilha ao invés de ensinada à participação política democrática? Os brasileiros vivem sob a égide de uma constituição cidadã. Ela se chama assim porque prevê mecanismos e ferramentas de participação popular, para o exercício da cidadania. Porém, quem são os atores ativos na participação pelos meios civis, políticos e sociais?
O país avançou desde a redemocratização em termos de direitos civis, de tomada de consciência em relação a direitos e deveres e de participação política. A organização se deu não apenas pelos atores eleitos democraticamente, mas também por organizações de classes por meio de sindicatos, associações e federações profissionais e industriais, por exemplo. O lobby político de forças econômicas e de classes se fortaleceu no topo da pirâmide, mas o debate pouco desce à base.
De fato, é sabido o quanto a democracia constitucional brasileira prevê direitos e deveres civis e um sistema jurídico robusto por meio do qual qualquer cidadão pode fazer reivindicações legais individualmente ou coletivamente. Da mesma forma é conhecido e amplamente divulgado o sistema de representação legislativa (democracia representativa), no qual o eleitor deve acompanhar e dialogar com o seu representante na Câmara, Assembleia e Congresso Nacional. Até aqui a nossa sociedade conhece e pratica a consciência civil e política. Neste sentido, a Constituição de 1988 instituiu um Estado de Direito eficiente. Porém, os remédios civis e políticos constroem um modelo no qual a lei é soberana, mas o acesso à esfera legislativa e aos remédios legais é desigual. Neste ponto entra a palavra “democrático”, ou seja, Estado Democrático de Direito. Mais do que um Estado de fiscalização entre os Três Poderes, liberdade de imprensa e sistema jurídico acessível, a Carta Cidadã prevê uma participação de todos. A ideia vem do Rousseau em “O contrato social”, ou seja, a soberania nacional deve ser construída para atender a “vontade geral” pela dignidade humana – o que é diferente da vontade da maioria.
O sistema democrático brasileiro atribui poder ao cidadão na Constituição do regime, porém pouco ou quase nada avançou nas ferramentas de escuta da população para além do voto na urna de dois em dois anos. A falta de escuta e de consulta por parte dos governos prejudica o envolvimento no debate público qualificado – papel fundamental desempenhado pela imprensa na nossa democracia.
Os anseios não falados ou não escutados geram angústia e insatisfação. O acúmulo de frustrações leva a um rompante, uma eclosão, um grito de chega. É assim que muitas vezes acabam relacionamentos amorosos de muitos anos, pela falta de diálogo e expressão de sentimentos. O amor entre as vozes de muitos movimentos sociais e a esquerda petista teve este rompimento em 2013. É sabido que o período subsequente abafou mais ainda as vozes já engasgadas, o que provocou um recuo. Este passo atrás reconduziu o PT ao poder na esfera federal, com a eleição de Lula. Mas, por certo, os dez anos fortaleceram a extrema direita – para quem o Estado de Direito não precisaria do democrático no meio.
O desafio é continental, do tamanho do Brasil. Os meios de participação de grupos sociais precisam avançar e as pessoas devem ser educadas não apenas para terem uma ocupação profissional, mas também para serem ativas nas suas comunidades e agirem pela vontade geral repactuando o contrato social quantas vezes for preciso. Chegamos no momento de avançar do civil e político para o social no Brasil para desengasgar as vozes antes que os gritos voltem a tomar as ruas de forma caótica como vimos em junho de 2013. É participação ou morte!