A utilização de inteligência artificial deixou de ser parte de um futuro ficcional distante, se tornando uma ferramenta de nosso dia a dia, conforme pode ser percebido na utilização de recursos como chatbots e algoritmos, e mais recentemente, o tratamento de imagens e sons para emular inclusive pessoas falecidas. Os impactos destes meios no direito ainda demandarão muitos debates, e em cenários que certamente ainda não conseguimos conceber atualmente.
Um desses exemplos é a peça publicitária veiculada por uma fábrica de automóveis na comemoração de 70 anos de suas atividades no Brasil. Na propaganda, a imagem da cantora Elis Regina, falecida em 1982, guia uma Kombi da primeira geração, conhecida como “corujinha”, fabricada nas décadas de 1950 e 1960, e contracena com sua filha Maria Rita, viva, e que dirige uma ID Buzz, releitura elétrica da mesma perua. Na época de Elis, o direito exigiria da proprietária da Kombi, no máximo, o pagamento dos tributos envolvidos em sua compra e manutenção, e a análise de alguns contratos. E nos dias atuais, como o direito recebe, ou deveria receber, essas inovações tão disruptivas?
A tradicional ideia de saisine do direito civil, onde a morte transfere a herança aos sucessores de forma imediata, enquanto se aguarda a andamento dos trâmites burocráticos, por exemplo, precisa de alguma acomodação legal em face das possibilidades trazidas pela tecnologia. Onde buscar parâmetros de regulação para um conflito que envolva os direitos de imagem de um artista falecido, onde sejam partes não só seus herdeiros, mas parceiros artísticos e comerciais e até em certa medida, os interesses difusos e coletivos de terceiros?
Não podemos esquecer que a liberdade de imprensa, de informação e de divulgação são inegavelmente direitos fundamentais de cada indivíduo com expressão coletiva e alcance público. Portanto, ao pensarmos em propagandas de ampla divulgação, não há equívoco em falarmos sobre a existência de um direito difuso ao acesso a informações verdadeiras. Diante de hologramas e vozes criadas por recursos de inteligência artificial, como o cidadão ou o consumidor standard, aquele com o conhecimento e culturas consideradas medianas em uma sociedade, saberá o que é verdadeiro ou falso? Perigoso ou seguro? O que Belchior diria?
Tampouco seria papel da regulação jurídica impor normas e limites a qualquer avanço tecnológico logo em seus primeiros passos, como forma de ocupar o pretenso vácuo legislativo. Tal movimento provavelmente dificultaria a evolução tecnológica, podando a criatividade dos inovadores com grandes prejuízos a economia, comércio, indústria, enfim, todos os segmentos da sociedade.
Na verdade, não há um caminho reto a ser seguido no inevitável encontro entre a regulação e as inovações tecnológicas, por mais disruptivas que sejam. As curvas, ladeiras e vales devem ser trilhados com um misto de ousadia e parcimônia, tendo como paradigma inafastável os direitos e garantias fundamentais descritos na Constituição Federal, de forma a privilegiar a proteção da sociedade em face do anseio pelo lucro abusivo, como é bastante comum, infelizmente.
Se Gutemberg, inventor da prensa, pudesse ver hoje como o processo de disseminação de conhecimento e informação evoluiu desde 1455, data em que sua criação permitiu a impressão em massa de jornais e livros, para permitir que uma mensagem publicitária pudesse reunir mãe falecida e sua filha, despertando paixões, elogios e críticas em milhões de pessoas, certamente ficaria orgulhoso.
Marcus Vinicius Macedo Pessanha é advogado e escritor