Desde segunda-feira, 3 de outubro, venho tendo pequenas (porém incômodas) crises de ansiedade que surgem diante dos motivos mais insuspeitos. Um farol fechado no trânsito, um pôr do sol lindíssimo, um pedido de abraço da filha, uma conversa sobre política no WhatsApp da família – num grupo em que todos estamos “do mesmo lado da força”. Venho dizendo a mim mesma que o fato delas terem iniciado logo após o primeiro turno da eleição não passa de coincidência.
Crises de ansiedade e ataques de pânico costumam ser vistos como frescura ou “falta de respiração/exercício/alimentação adequada” por quem nunca passou por isso. Pois posso garantir: não é. Depois que passam, deixam um travo amargo – por vezes, tragicômico. Não consigo deixar de rir de mim mesma ao lembrar da noite de 2010 em que, voltando à noite do trabalho, parei no hospital a caminho de casa com o coração aos pulos e os dois braços dormentes.
Na triagem da emergência, perto da meia-noite de um dia que havia começado às sete, expliquei à enfermeira (que não conseguiu disfarçar a perplexidade – e um quê de impaciência): “Tenho quase certeza de que é uma crise de ansiedade. Mas preciso me certificar de que é isso mesmo, e não um ataque cardíaco. Tenho medo de acontecer comigo o que aconteceu com o Zé Rodrix”. Emendei então a história sobre como o músico carioca havia morrido no ano anterior. Achando que estava apenas tendo mais um de seus tantos ataques de pânico, decidiu que não pagaria o mico de ir mais uma vez ao pronto-socorro para descobrir que não era nada. Era. Ele morreu na mesma noite – de enfarte.
Na época, tive essa e mais duas crises, que logo relacionei ao estresse de acumular tantas atividades profissionais. Por dois semestres, todas as quintas-feiras, depois de oito horas na empresa eu passava mais três horas na estrada e três horas dando aula. Aos 36 anos, entendi que precisava reconhecer meus limites.
Depois disso, as crises sumiram. Passaram a ser apenas lembranças anedóticas. Tenho a sensação de que, com o nascimento da Lina, o foco das minhas atenções mudou, e a imensidão da responsabilidade de criar uma filha parece ter tornado esses medos supérfluos. Muito de vez em quando, sentia uma pontada de aflição que me fazia temer o medo, mas não vingava. Como aprendi na terapia, eu identificava o “gatilho” (para usar um termo da moda) – normalmente relacionado ao estresse e à eterna mania de querer abraçar o mundo com as pernas – e cessava sozinha a desorganização interna.
Só que nesses últimos dias estava sendo diferente. Eu não estava conseguindo encontrar o detonador da sensação de pânico e mal-estar, para poder abafá-la.
Medo do Bolsonaro se reeleger? Não pode. Já amadureci o suficiente para entender que, por pior que seja um governo (e esse que nos aflige há quatro anos é, de fato, um horror), a vida segue, e eu me desesperar não vai ajudar ninguém. Medo do check-up de rotina que estou fazendo depois de quase três anos, adiado por conta da pandemia? Não pode. Estou me sentindo bem, me cuidando, e os primeiros exames saíram todos bons. Medo da entrada da Lina na pré-adolescência? Não pode. Ela chegou aos 10 anos com saúde e um autoconhecimento de dar inveja a muito marmanjo (como eu, por exemplo).
Foi no fim de semana, conversando com amigos queridos, num jantar tranquilo, que entendi a causa desse retorno do pânico.
A falta que nos faz uma estrutura
Aqui abro um parêntese. Foi em 1996 que tive as primeiras crises de ansiedade, que demorei a identificar como tal. Aos 22 anos, entrando na vida adulta, achava que eram apenas manifestações exacerbadas da tristeza profunda causada pela perda do meu pai, que morreu aos 48 anos, vítima de um câncer fulminante.
Era uma figura, o Jurandir. Com uma honestidade que beirava a obsessão, incutiu em mim e na minha irmã senso de justiça (pessoal e social) e uma inabalável crença na democracia. Lutava contra os próprios preconceitos e, pai de duas filhas, sofria para combater o próprio machismo (o que mais de uma vez declarou abertamente, usando do senso de humor com que costumava temperar suas relações). Tinha pavor do PT e de Lula, mas imagino sem medo de errar que hoje estaria do mesmo lado de pessoas que admirava, como Fernando Henrique Cardoso.
A morte dele tirou o chão de debaixo de mim. Fez desmoronar as paredes. Quase 30 anos depois, ainda vivemos reverberações da sua ausência. Descobrimos na prática que o filho mais CDF da Dona Heloísa e do Seu João era como um pilar da nossa estrutura familiar. Nos desarranjamos, e até hoje lutamos para nos rearranjar.
No jantar do último sábado, entendi que é essa mesma sensação que vivo agora. Estamos sem chão, como que lutando metaforicamente uma guerra sobre escombros. Os dois anos de pandemia passados sob os desmandos de um governo caricato foram surreais demais para qualquer estrutura emocional dar conta. Mesmo que não se empunhem armas, mesmo que não haja tentativa de golpes, mesmo que não haja protestos violentos contra qualquer que seja o resultado da eleição, já estamos profundamente adoecidos.
Pessoas que se amam e convergem em todos os aspectos, menos o ideológico, rompem relações de anos. Irmãos ficam sem se falar. Casais têm discussões acaloradas por questões que não mudam em nada seus cotidianos. Estamos com falta de leveza. Espetáculos musicais, teatrais, filmes, séries, novelas e livros não são mais apenas aproveitados por seus valores artísticos. Os comentários sobre cada obra parecem ter a obrigação de virem envolvidos em um manto político radical. A política é inseparável da vida cotidiana, mas precisa mesmo ser sempre carregada de fúria?
Tudo nesta vida tem limite
E eu descobri então que é disso que tenho medo. Me aflige demais que a Lina seja adolescente num país governado por um sujeito para quem é natural “pintar um clima” entre um homem de 70 anos com crianças de 14 anos. E que a caterva que o vê como mito se sinta autorizada a expressar esse tipo de absurdo. Mais do que isso, eu tenho medo que esse câncer que é a profunda divisão em que se encontra o nosso país acabe por afastar de mim pessoas que me foram, me são e provavelmente me serão importantes e queridas, quaisquer que sejam suas crenças. Quer porque eu pense diferente delas, quer porque elas acreditem que, por eu pensar diferente delas, não vá querê-las na minha vida.
Não me entenda mal quando falo de relevar discordâncias. Há anos, repito um mantra que serve para os mais diversos aspectos (da quantidade de tempero na comida ao número de horas que passo lendo um bom livro): tudo nesta vida tem limite. Descobri e senti na prática nesses últimos tempos que se alguém discorda do direito de uma pessoa por seu gênero, etnia, orientação sexual ou situação social, não há conversa possível.
Infelizmente, embora esteja tentando nem ao menos cogitar de uma reeleição do atual presidente, não creio que vá fazer tanta diferença no nosso dia a dia o resultado das urnas. Porque essas milhões de pessoas que seguiram votando pelo preconceito, a misoginia, a ignorância e, em última análise, o ódio, mesmo depois dos quatro anos que vivemos, continuarão existindo. O bolsonarismo não depende de Bolsonaro. Quem diria, a então presidente Dilma Rousseff, em uma de suas falas mais confusas, estava coberta de razão: “Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder”.
Já perdemos demais. Como diz em seu livro As Sereias de Titã meu adorado Kurt Vonnegut, com tradução de Livia Koeppl: “O propósito da vida humana, independentemente de quem a esteja controlando, é amar quem estiver ao seu redor”. Vamos parar, respirar e trabalhar com quem estiver ao nosso redor com a intenção de juntar esforços, mesmo que com diferenças, para sair desse buraco em que fomos enfiados? Quem vem comigo?
Dresden, na Alemanha