Olhando ao redor, não parece que todos os que nos cercam já viveram ou vivem algum tipo de relacionamento “tóxico”? Seja em relações de amizade, amorosas ou mesmo profissionais, já ouvimos inúmeros relatos sobre pessoas que são abusivas, agressivas, pesadas, indiferentes, até mesmo cruéis em relação ao dono da narrativa. Algo que chama a atenção é que essas histórias via de regra são contadas pelas vítimas.
Será mesmo que temos a sorte de não haver em nosso meio os perpetradores dessas relações?
Criando uma menina há 10 anos, não posso deixar de reparar que essa obsessão em qualificar o outro e sua forma de se relacionar nasce bem cedo, junto conosco. Em vez de dizermos aos nossos filhos que talvez o fulaninho simplesmente não goste dele e que isso faz parte da vida, argumentamos que fulaninho “tem inveja” dele, ou que fulaninho “tem problemas”. A verdade, o avançar da idade tem me mostrado, é que a gente não gosta de todo mundo e, sejamos realistas, muito pouca gente vai gostar realmente de nós. E, como dizem nas redes sociais, “tá tudo bem”.
O problema vem quando somos (ou nos vemos pelas circunstâncias) obrigados a conviver com pessoas com quem não temos afinidades e forçamos a barra ou não aprendemos que não gostar do outro não nos dá o direito de o maltratarmos. Em um planeta com 9 bilhões de viventes, não tem por que insistirmos em manter contato com quem não nos agrade ou não nos trate bem apenas porque sim.
Lembre dos budistas: tudo é impermanente
E tem mais: o que um dia foi, pode não ser mais. Amizades acabam. Amores minguam. Até mesmo relações profissionais e familiares perdem o sentido depois de um tempo. O tempo, o mesmo que cura tudo, também desgasta. Interesses mudam, a paciência se esgota, as escolhas nos afastam de quem antes já foi próximo. E em vez de preservarmos o que já foi bom e guardar como uma lembrança, decidimos rotular e culpar.
“Não falo mais com fulano porque ele é tóxico.” Ora, tome tenência! Assuma a responsabilidade pelas próprias escolhas. Você se relacionou durante uma década com alguém e de repente aquela pessoa vira um monstro? Não precisa observar com muita atenção para descobrir que o que houve foi que um (ou os dois) mudou. E, de novo, tá tudo bem. Bola ao centro e recomeça o jogo, até porque a vida é curta demais pra ficar pedindo VAR de toda e qualquer bola enviesada que recebemos na pequena área.
Cabe a nós, pessoas supostamente preocupadas com o próprio bem-estar e o de quem nos importa, tentar melhorar, mas, se você for sincero consigo mesmo, vai admitir que não é nada fácil. Chega uma hora em que cansamos de relevar a autorreferência constante daquela amiga de adolescência que se considera a maior sofredora do mundo. Então passamos a não dar tanta bola pras lamúrias dela. E o que corremos o risco de virar na história que ela conta? Uma amiga tóxica, que não dá bola para o sofrimento dela.
Aquela amiga que está sempre fazendo piada com tudo? Cuja incapacidade de lidar com os próprios problemas ela mascara com um suposto bom humor eterno? Em algum momento, nos damos conta que precisamos de silêncio, e não teremos perto dela. Então, nós nos afastamos. E somos o quê? Pessoas tóxicas, que não temos senso de humor.
Agora vem o veja bem
Não estou dizendo que não existem pessoas inerentemente más, provocadoras, geradoras de intriga, exageradamente narcisistas (outro adjetivo da moda, que fica para outra coluna). Elas existem e, sim, relacionar-se com elas pode ser um martírio, especialmente quando não temos alternativa. Mas mesmo essas podem ter alguma salvação, podem despertar uma identificação específica com alguém. A gente nunca sabe. Todo mundo tem sua turma. Taí o Bolsonaro, que não nos deixa mentir.
Em tempo
A amiga autorreferente e a piadista dos exemplos acima? Ela já fui eu. Assim como fui a que se afastou. Tóxica. Porque, não se engane, querido leitor, estimada leitora, em algum momento e para alguém vocês também são tóxicos! E tá tudo bem.