Esses dias fiz um voo curto para uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. Poderia ter sido apenas mais um deslocamento de rotina, mas me chamou a atenção que era ainda um daqueles aviões com aquela gavetinha de metal no banco, que em outras época servia de cinzeiro.
Como só passei a andar de avião depois dos anos dois mil, nunca viajei em um trajeto em que era permitido fumar. Ainda bem, diga-se de passagem: nunca gostei do cheiro de cigarro.
Mas fiquei imaginando como teria sido aquela época para aqueles que, como eu, não fumam. Entrar no avião, arrumar a mala no compartimento superior, ajeitar a mochila embaixo do banco da frente, talvez pegar um livro e ficar com ele na mão até a decolagem. Talvez recostar a cabeça contra a janela e tentar dormir um pouco, apesar da turbulência e do barulho das turbinas (e das hélices, no caso do meu voo). Visualizo a cena em que, minutos depois, alguém saca do bolso da camisa ou da bolsa um maço e dali leva um cigarro à boca. O barulho seco do risco do isqueiro. O som da ponta do cigarro sendo queimada, o leve calor do tabaco sendo consumido. Uma baforada profunda exalada sem a menor cerimônia. O cheiro de fumaça nicotinada tomando conta dos poucos metros quadrados em que estaríamos, eu e o fumante, compartilhando pelo resto do trajeto.
O problema não acabaria por aí.
Depois sairíamos do avião com as nossas roupas impregnadas pelo odor teimoso do cigarro. A camisa, a calça jeans, as meias, até mesmo o sapato carregando em si os resquícios de tabaco. Para o vizinho de viagem, talvez este cheiro passasse desapercebido, tão acostumado com confundir o seu próprio aroma com aquela extensão fumegante de si. Para mim, entretanto, não seria nada agradável: eu provavelmente chegaria no hotel e colocaria as roupas em cabides, de preferência na janela onde circulasse vento, para tentar eliminar delas o cheiro. Tomaria um banho assim que pudesse, na pressa de tirar de mim – dos cabelos, especialmente dos cabelos – qualquer lembrança olfativa que restasse.
O cheiro do cigarro parece ficar dentro da gente, colonizar nossas narinas, ocupar nossos pulmões não-fumantes.
Não é que eu deteste os fumantes, caro leitor, nem de longe. O que eu realmente não gosto é de ter o meu espaço invadido.
O bolsonarismo a que estivemos expostos nestes últimos quatro anos é como esse fedor de cigarro. Ele impregnou nossa rotina, grudou nos nossos afazeres domésticos, tomou conta das nossas famílias e amigos, se alastrou por todos os cômodos da nossa casa. Passamos muito tempo tentando eliminar o bolsonarismo de nossos laços afetivos, quase sempre sem sucesso. Mesmo que fechássemos as janelas e que colocássemos um tapete na soleira da porta, aquela fumaça sempre achava um jeito de entrar em nossa casa e empestear nossas vidas.
Mesmo agora, que finalmente parece que conseguimos dar um basta a este vetor de morte, ainda assim surgem uns e outros seguem ultrapassado os limites que tentamos dar, que insistem em baforar o hálito fétido do fascismo à brasileira na nossa cara.
Como vamos fazer para desbolsonarizar as nossas vidas? Como vamos lavar de nossas roupas esse cheiro impregnado?
Assim como os fumantes, os bolsonaristas seguirão por aí, seja como representantes da extrema direita no Congresso e no Senado, seja dividindo o elevador do prédio conosco. Faz parte, infelizmente.
Entretanto, agora que os bons ventos parecem estar retornando, talvez já seja arejarmos as nossas roupas no varal. Estendermos os lençóis impregnados para podermos dormir com conforto de novo. Sonhar com um país mais justo e menos fétido.
Da minha parte, meu leitor, pretendo fazer isso aqui mesmo, nesta minha coluna semanal. Como todo aquele que escreve sabe, o processo criativo vai muito além daquelas horas em frente ao computador. Nós estamos sempre escrevendo dentro de nossa cabeça, tomados pelo tema a que vamos nos dedicar. Isso significa que passei os últimos tempos com minha atenção e preocupação impregnados deste horrível cheiro da fumaça bolsonarista.
Sinto que é hora de abrir as janelas e deixar o aroma da primavera entrar. Escrever sobre outras coisas, desejar a vida porvir e ignorar por um segundo que aqueles cinzeiros dos aviões ainda guardam dentro de si uma borra cinzenta residual, resquícios de um tempo que, por sorte, ficou para trás. Ainda assim, sabemos bem que este misto de ditadura e totalitarismo nunca foi devidamente limpo dos cinzeiros de nossa história.
Mas agora já é proibido fumar em lugares fechados.
Pra mim, por enquanto, tá ótimo.